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Os arrumadores, ou o retorno das populações relegadas

A droga torna visíveis as vítimas da desigualdade tira-as das periferias, para onde foram relegadas, e empurra-as de novo para os centros.

O imaginário profundo em que vivem as drogas aproxima-as de dois mundos: o da loucura e o do transe. Ambos são, tal como a psicoactividade, estados translúcidos: historicamente, a palavra fragmentada do louco podia conter profecia e revelação, adivinhadas pelos avisados por entre a ruína do seu pensamento; quanto ao transe, estado de limbo e êxtase potenciado pela ingestão de alucinogéneos, marcou certo tipo de sociedades tradicionais e pontua ainda hoje em sociedades urbanas complexas onde o racionalismo ocidental não foi capaz de expulsar - oh, circunstância feliz! - outras formas de exercer a nossa relação com as coisas e com o espírito, como testemunham as culturas brasileira ou mexicana.
O transe testemunha o lado socio-culturalmente integrado das drogas e fornece um imaginário arcaico ao lado psicadélico e espiritualista do fenómeno droga que tem um fio de continuidade desde o movimento hippie dos 60's ao actual movimento trance das novas drogas. Já a loucura parece trazer à luz a vertente negativista que tem procurado associar drogas à perda de si e dos outros - "droga-loucura-morte" foi o primeiro dos slogans da primeira campanha anti-droga, ainda durante o regime marcelista. Sob o signo da diabolização do fenómeno, comandada pela política de tolerância zero do maior produtor mundial de marijuana - os EUA - afastou-se a psicoactividade das funções que mais a aproximavam dos seus usos ancestrais - rituais, psicadélicos, festivos, lúdicos ou curativos - e, no fim da linha da caça às bruxas, expulsou-se a possibilidade de convivência pacífica com a translucidez, relevando unilateralmente o que nela havia de abismo, de perdição, de tragédia, de patologia, de transgressão. À sua proibição legal seguiu-se o seu interdito, mesmo nos recantos mais suaves da liberdade de cada um.
Tornada elemento perigoso, centro de mafias comerciais onde melhor se anunciou ainda antes do tempo a globalização, convertida em catalisador de trajectórias de dependência grave e de marginalidade, parece ser o elemento produtor das novas "classes perigosas" - e ninguém sabe já se ela é causa ou consequência, se vem antes ou depois, se é o agente patológico ou simplesmente o sintoma do mal estar civilizacional. No "estados translúcidos" de Março, Rui Tinoco desenvolvera já as relações das drogas com a exclusão e o papel que jogam no confronto entre a cidade central e normativa e a cidade periférica e anómica - dicotomia simplista que se encarregou de problematizar. Elegemos hoje, da galeria das figuras que desenham as fronteiras e as incomunicações entre estas duas cidades, a figura do arrumador de automóveis.
Diz-se que a maioria são toxicómanos: puro reducionismo da complexidade desta figura. Ela é, isso sim, a consequência do acúmulo de situações negativas próprias à violência inscrita na vida da periferia social. A droga não fez mais do que tornar estas figuras visíveis, devolvendo-as à cidade donde foram meticulosamente escorraçadas por um desenvolvimento que projectava as vítimas da desigualdade para fora da visibilidade do centro. Retornam, agora, impelidos pela ressaca - dotados, pois, de um potencial de perigosidade que é a factura a pagar por uma sociedade que não tem querido meditar nas misérias que a riqueza produz...
E se ser arrumador fosse, ironicamente, a única maneira de um indivíduo das margens poder entrar em contacto com o centro? Meditemos no que é um percurso típico do nosso dia-a-dia: como levamos os filhos à escola? Como vamos para o trabalho? E à noite, jantar fora ou ao cinema? O que são as ruas da cidade à noite? Corredores ocos por onde circulam viaturas. A possibilidade da presença humana é um intervalo entre o estacionamento do carro e um percurso a pé de poucos metros para o centro comercial ou para o edifício mais próximo. Que fizemos da cidade dos encontros e dos percursos pedonais?
Os dois objectos, a par com o computador, que mais transformaram o século XX foram a televisão e o automóvel. A primeira, alterou-nos espantosamente a comunicação no espaço doméstico - em muitos casos empobreceu-a e esteriotipou-a. O segundo alterou brutalmente a nossa relação com o espaço público - em muitos casos, empobreceu-a e esteriotipou-a. O arrumador é o actor social que vem instalar-se nos interstícios da cidade produzidos pela hipertrofia do automóvel - mais do que um produto causal da droga é, enfim, uma metáfora da tensão nas relações centro/margem.


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 112
Ano 11, Maio 2002

Autoria:

Luís Fernandes
Professor da Fac. de Psicologia e Ciências da Educação, Univ. do Porto
Luís Fernandes
Professor da Fac. de Psicologia e Ciências da Educação, Univ. do Porto

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