Nestes últimos tempos alguns artigos publicados em jornais
diários têm veiculado um discurso de acusação ao conhecimento que se tem produzido
no domínio das Ciências da Educação por conduzir a um facilitismo e a uma desresponsabilização
dos professores face à sua actividade profissional. Um desses artigos foi publicado
pelo Público a 3 de Novembro p. p., com o título "Ensinantes e Aprendentes",
e foi assinado por Guilherme Valente. A sua leitura desafiou-me a expressar,
por meio deste texto, o meu olhar sobre algumas das situações e opiniões aí
focadas e sobre o que está a ser proposto, do ponto de vista curricular, pelo
DEB (Departamento do Ensino Básico) para o ensino básico, em Portugal.
Devo, à partida, dizer que não partilho de algumas das interpretações,
e talvez conceitos, que orientam o autor do referido texto, mas a minha intenção
não é refutar os argumentos expressos no artigo mas, sim, apresentar e justificar
uma outra forma de interpretar os actuais papéis atribuídos às escolas, aos
professores e ao currículo nacional e uma outra forma de interpretar o que deve
ser uma exigência nacional para a educação básica e obrigatória.
Creio que se reconhece a importância de todos os cidadãos
possuírem uma formação onde se adquiram saberes necessários à compreensão dos
fenómenos, das situações e da vida e onde se desenvolvam competências do domínio
social e do aprender a viver em sociedade. A este propósito, o Relatório para
a UNESCO para a educação para o século XXI sustenta que esta se deve estruturar
em torno de quatro pilares: o aprender a conhecer (enquanto pré-requisito
para adquirir outros saberes); o aprender a fazer (na visão prática do
saber); o aprender a viver juntos e aprender viver com os outros (dadas
as características de multiculturalidade cada vez mais presentes nas sociedades);
e, tudo isto, para aprender a ser. O próprio artigo a que me referi afirma
esta importância da escolaridade obrigatória. E é por reconhecerem essa importância
que muitos dos que estão atentos ao que se vai passando na educação escolar,
e tentam mesmo intervir para a melhorar, apoiaram com agrado a enunciação, na
Lei de Bases do Sistema Educativo Português (Lei nº 46/86), do princípio que
afirma ser "da especial responsabilidade do Estado promover a democratização
do ensino, garantindo o direito a uma justa e efectiva igualdade de oportunidades
no acesso e sucesso escolares". Lembro-me, na altura, que muitos esperavam que
viessem a ser tomadas medidas pelo Ministério da Educação, pelas escolas e por
todos os responsáveis pela acção educativa, que promovessem esta igualdade de
oportunidades. Por outro lado, o meu desejo, e de muitos outros educadores,
não era que esse sucesso escolar fosse obtido à custa de um abaixamento de nível.
Pelo contrário, tinha (e tenho cada vez mais) claro que a sociedade é competitiva
e que, por isso, é necessária uma boa e ampla formação para vencer os desafios
do presente e do futuro. E é assente nesta ideia que continuo a considerar pertinente
encontrar meios que respondam às críticas que, ao longo destes anos, têm sido
feitas à organização curricular e aos processos de formação seguidos na escola.
Todos nós recordamos as queixas de muitos professores sobre
a extensão dos programas e a não presença de conteúdos e de situações significativos
para muitas das crianças e jovens presentes actualmente nas escolas, as queixas
que expressam o desinteresse de muitos dos alunos por aquilo que os professores
lhes têm de ensinar e as queixas da falta de uma co-responsabilização social
pelo acto de educar. E recordamos, também, as críticas que o mundo do trabalho
e a designada sociedade civil fazem à escola por privilegiar a instrução face
à educação e ao desenvolvimento de competências que permitam aos alunos aprender
a compreender, a ser, a tomar decisões e a criativamente intervir.
Ao mesmo tempo, todos vamos dando conta que, apesar da educação
escolar se orientar pelo princípio da igualdade de oportunidades de sucesso,
continuam a ser todos os anos excluídos do sistema inúmeros alunos pertencendo,
muitos deles, a famílias ou a grupos pouco familiarizados com os códigos escolares
e que não têm encontrado no interior da instituição, que devia ser educativa,
condições para romperem com estas situações. E tudo isto se agrava quando se
trata de uma educação básica, que deve ser para todos e que é obrigatória. De
facto, pode-se até questionar a legitimidade de um sistema que obriga alguns
(e são muitos) ao insucesso escolar. Por tudo isto, em minha opinião, as práticas
educativas que decorrem do actual modelo curricular têm o seu sentido por constituírem
um meio para minorar estas situações e problemas.
Reforço, uma vez mais, a ideia de que a atribuição às escolas
e aos professores de um papel activo nos processos de organização e gestão do
currículo do ensino básico se justifica para aumentar a qualidade da formação
que cada aluno/a vive na escola. E, neste sentido, lembro, como um dos princípios
subjacentes à ideia de qualidade, a importância que deve ser atribuída a todos
os elementos de uma organização na construção de um produto colectivo. Ou seja,
lembro que a qualidade implica um envolvimento de todos, e dos seus pontos de
vista, no encontrar de soluções para os problemas com que a instituição e os
seus elementos se vão deparando.
Estes são os motivos que me fazem congratular por, finalmente,
a administração educativa reconhecer que a qualidade do ensino e a capacidade
de responder às situações reais e de mobilizar os recursos locais passa pelo
envolvimento das escolas e dos seus agentes na procura de caminhos que se adequem
a esses contextos reais e que propiciem uma formação com sentido para todos
os alunos. É o reconhecimento da inadequação de um "currículo de tamanho único
e pronto a vestir", de que falava J. Formosinho nos anos 80, e que se dirige
a um aluno abstracto, que se pensa que existe, mas que não é, como os professores
muito bem sabem, o aluno real.
Com o que estou a defender não pretendo, de modo algum, afirmar
que o movimento que faz das escolas, dos professores e de outros elementos da
comunidade educativa parceiros dos processos de decisão curricular exclua, ou
ignore, a responsabilidade do Ministério da Educação. Ele pressupõe e exige
muito envolvimento e acompanhamento da tutela educativa. A autonomia das escolas
e dos professores não significa (nem pode nunca significar) não prestar contas,
"deixar as escolas e os professores entregues a si próprios" (como refere Guilherme
Valente). Pelo contrário, significa uma maior necessidade de prestação de contas,
pois existe uma maior dependência face aos contextos e situações reais.
É enquadrada por estas ideias que apoio o entendimento do
currículo nacional como um projecto que tem de ser gerido localmente para que
se adeque aos contextos e populações onde se vai desenvolver. E esta adequação,
realizada através da concepção e desenvolvimento de um projecto curricular de
escola, que se concretiza por projectos curriculares de turma, tem de ser contratualizada
com a administração educativa e deverá ter como objectivo partir das situações
reais para não deixar os "alunos encerrados no seu universo de referência".
De facto, seria completamente perverso, em termos de uma formação para o futuro,
que se limitasse o saber de cada criança e jovem às suas experiências de vida.
Mas é também perverso esquecer essas experiências ou obrigar as crianças e os
jovens a esquecê-las.
É necessário criar condições para que todos adquiram os saberes
socialmente mais reconhecidos mas, para isso, como tem vindo a ser por muitos
demonstrado, há que partir do que cada um/a já sabe e que funcionará, quer como
"ancoradouro" para outras aprendizagens, quer como um reconhecimento que terá
como efeitos o desenvolvimento, em cada um/a, de auto-conceitos mais positivos.
E, na construção deste caminho educativo, todos nós, como Paulo Freire tão bem
proclamou, somos, simultaneamente, "ensinantes e aprendentes".
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