Sempre ouvi dizer que a Coreia era assim como uma mistura do Japão com a China. Uma definição gratuita, sem dúvida, mas que não deixa de ter o seu quê de verdade. E para o sentir nada melhor do que entrar no país pela vía marítima. Em Shimonos@ki, cidade portuária do sudoeste japonês, respira-se já muito do ambiente que se vai encontrar mais tarde no país do alho e do kimchi. Na sala de espera para o embarque no ferry "Kampu", que faz a ligação diária entre a Coreia e o Japão, horas antes da partida, homens e mulheres coreanas, num frenesim impensável entre nipónicos, alinham já caixotes e sacos cheios com artigos adquiridos nas lojas da cidade japonesa. As velhotas deitadas ao comprido sobre os sofás e a chiadeira irritante dos carrinhos com as compras quebram por completo a compostura e discrição nipónicas. ShimonosQki, à força deste intercambio, é já uma Coreia em miniatura. Mas é no interior do "Kampu" que o choque se faz mais sentir. Habituado à extrema delicadeza e ao sorriso fabricado dos japoneses, fiquei indignado com a rudeza das mulheres de negócio coreanas que se instalaram nas camaratas dormitório da classe económica como se estivessem sózinhas em casa. Mal descalçaram os sapatos, trataram logo de abrir as sacolas e repartir o seu contéudo por pequenas sacas nlnRtinnR Nllm nniee S enrnete nlle serve de leito comum ficou água na fervura. Na manhã seguinte, ancorados junto à costa coreana, a fazer horas para que abrissem os serviços de imigração, com a torre e os telhados coloridos de Pusan ainda a centenas de metros de distancia, comecei a valorizar o riso e os gestos soltos dos coreanos. Pusan, para mim a primeira página da Coreia do Sul, surgiu como espécie de Japão desordenado com um povo mais orgulhoso e com menos salameques que os seus antigos invasores. Junto à torre observatório do parque de Yongdusan, os velhos, de chapéu na cabeça e fatos claros, reunem-se todos os domingos em torno de um guitarrista um pouco mais jovem. Este, pauta aberta à sua frente, executa com destreza numa Gibson os temas requeridos pelos cantores do improviso. O contacto com o estrangeiro é inevitável. "Where do you come from?" À resposta Portugal liga-se o nome de Eusébio. Os sul-coreanos recordam ainda a inesperada vitória da equipa das quinas sobre a selecção nortecoreana no mundial de 66. 0 homem à minha frente, óculos de lentes amarelas, calças axadrezadas e sapato brilhante dè tanto lustre, é um coreano sul-americano. "Vivo no Panamá", diz. "Me gustan las chicas aí". Ouvi dizer frequentemente que os coreanos são os mais latinos dos povos asiáticos. Não chegaria a tanto - quem o diz provavelmente nunca conheceu filipinos -, mas a sua espontaniedade aliada à discrição oriental tornam-nos num povo agradável, de fácil contacto. Os coreanos são curiosos sem ocuparem muito espaço. E, malgrado os esquemas sociais rígidos, são perfeitamente capazes de os ultrapassar para agradar o visitante. Apesar da inegável individualidade e orgulho próprio a Coreia imita quase tudo o que vem do Japão, o país odiado. O mundo ocidental, por exemplo, chegou aqui via Japão. Os sinais de tráfego nas auto- estradas são semelhantes, só que a Hyundai, Daewo e Kia nacionais substituem a Toyota, Honda ou a Nissan. As máquinas automáticas de bebidas e cigarros chamam-se Samsung e Gold Star, ou melhor, LG, como é agora conhecida esta multinacional. No metropolitano as máquinas de bilhetes são mais lentas nos trocos, mas as Auto-Exchange Bill estão sempre onde precisam de estar. Nos escaparates dos quiosques as revistas e jornais coreanos seguem exactamente a mesma estética das suas congéneres japonesas. As manga - Bd's - mantêm o título e a imagem mas trocam o alfabeto para hangul. As lojas de conveniência, abertas 24 horas, vendem o mesmo tipo de doçarias e bolachas de arroz insuflado. Na televisão, os locutores e locutoras imitam os tiques e diálogos dos japoneses em concursos imbecis de domingo à tarde. Talvez com um pouco menos de exclamações, mas sempre com o ocasional convidado "nariz comprido" a servir de ave exôtica. A Coreia é a Coreia acima de tudo. Mesmo que a falta de gosto generalizada, a desconfiança, os modos rudes de algumas das pessoas e a construção desenfreada com planos urbanísticos de má fama e condições de segurança "à Lagardére", os aproximem mais dos chineses. No entanto, aquilo que mais caracteriza este país são, sem dúvida, as suas montanhas. Não há montanhas como as da Coreia. Poupadas ao desenvolvimento acelerado que se tem registado de há três décadas a esta parte, continuam sagradas. Mesmo hoje, no limiar do século XXI. Joaquim Castro
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