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A Menina Que Molhava o Lençol

A míngua de crianças de mistura com a ideia que a escola só devia acolher crianças de pele branca, justificava que a turma fosse sexualmente mista. Também justificava que a professora tivesse todas as classes da instrução primária.

A professora era um improviso. Diziam, que o melhor diploma que tinha, era ser amante do director da empresa que sustentava a escola. Coisas dos anos cinquenta. E de África.

A professora chegava todas as manhãs pontualmente com meia hora de atraso. A empregada encarregava-se de saber se a criançada tinha chegado com a pontualidade requerida. As crianças aprenderam assim que pontualidade e estatuto, são duas coisas que se querem juntas. Seguramente que mais tarde, não tiveram dificuldade em entender e aceitar a lógica da atribuição do relógio de ponto. Próprios para quem tem de trabalhar, impróprios para quem tem a difícil tarefa de mandar. De resto, a escola reforçava estes conceitos, com ideias lapidares em quadros nas paredes. "Se soubesses o que custa mandar preferias obedecer".

Depois de chegar à escola a professora fazia o ditado aos da 4ª classe, enquanto os outros, se debatiam com as cópias. Terminado o ditado, a mestra ficava em ânsias pelo café e abalava, entre gritos de apelo, ao sentido da responsabilidade e do trabalho.

A criançada ? conforme as classes ? entretinha-se, teoricamente, com o desenho, a correcção dos erros, a cópia de palavras, a tabuada, ou mesmo as contas. Na prática, exercitava-se a imaginação sobre a melhor patifaria a fazer e à mínima oportunidade, a aluna mais velha, era impotente para impedir que se passasse da teoria à prática.

Até ao intervalo, era um esgrimir de argumentos, sobre a justiça e a injustiça dos nomes que a "menina" da professora escrevia e apagava no quadro.

Ao toque da campainha, como raramente a professora tinha morto a ânsia do café, a miudagem tomava a iniciativa de debandar para o recreio. Ganhavam-se e perdiam-se botões com fartura, bicavam-se piões, lutava-se afincadamente pelos berlindes e, de vez enquando, até se faziam casamentos. Algumas meninas brincavam às bonecas, uma ou outra mais velha, suspirava para marcar a diferença de idades.

Pontualmente atrasada, aparecia a professora a por cobro a toda aquela actividade e alegria. A segunda parte da aula era gasta a distribuir generosamente os castigos pelos prevaricadores.

Dia diferente e festivo foi o dia em que uma das meninas que suspirava para mostrar a diferença da idade, compareceu na escola de sobrancelhas rapadas. A miudagem já se tinha mostrada entre o curioso, o receoso e o admirado. A professora mostrou-se horrorizada. Após despachar a aluna para o lugar com três valentes bofetadas, a mestra esqueceu o ditado e a ânsia pelo café. Parecia uma sardanisca a quem tivéssemos cortado o rabo. Preparou rapidamente o plano de vingança. Os rapazes que fossem cortar canas e fizessem flautas para todos. As meninas que fizessem um cartaz com os dizeres "RATA PELADA".

O trabalho de grupo foi desempenhado com algazarra, alegria, afinco e grande sentido de responsabilidade. Terminados os preparativos, munidos cada um com sua flauta, a professora pregou o cartaz nas costas da menina, mandando-a para a frente do cortejo.

Formados em três filas bem alinhadas e disciplinadas, com a menina do cartaz e a professora à frente, deu-se alegremente, durante toda a manhã volta ruidosa a todos os sítios da aldeia. A miudagem intervalava os apitos das flautas com o grito ritmado de "RATA PELADA".

Ouvi um dia a minha mãe cochichar para uma vizinha que a mãe da pequena tinha dito que desde então a menina molhava todas as noites o lençol.

José Paulo Serralheiro


  
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Autoria:

José Paulo Serralheiro
Professor e Jornalista. Director do Jornal a Página da Educação.
José Paulo Serralheiro
Professor e Jornalista. Director do Jornal a Página da Educação.

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