Nas últimas décadas os grandes desafios postos à escola foram a democratização e a luta contra o insucesso escolar. Sem paixões, devemos reconhecer que se registaram alguns progressos, mas estamos longe de responder aos enormes desafios postos ao sistema escolar. No presente, a educação está perante dois grandes desafíos: a crise do trabalho e a evolução da concepção do saber. Toda a educação se apoia num modelo social que lhe serve de referência e lhe orienta a acção. É esse modelo social que condiciona a escolha dos conteúdos, a hierarquia dos valores, as formas de organização e de gestão. Na Idade Média, o modelo escolástico, não tinha outra finalidade senão o de perpetuar a ordem religiosa. Já na Idade Moderna, o trabalho tornou-se a principal referência e condicionou a organização da escola. É certo que o discurso retórico defende, hoje, que a escola forme também cidadãos. Mas o bom cidadão é apenas entendido como um bom trabalhador. De essencial nada mudou desde meados do século XIX. A educação moderna continua a assentar em dois pilares fundamentais: a preparação para o emprego e a aquisição de um certo tipo de conhecimentos. Em vez de mudanças reforçaram-se os objectivos que estiveram na base da criação dos actuais sistemas educativos: formação para o trabalho e para o emprego. Hoje falamos de "trabalho dos professores", "trabalho dos alunos", "trabalho escolar", "trabalho das escolas", "formação para o trabalho", "formação para o emprego", "adequação da formação às necessidades do mercado de trabalho", "participação dos empregadores na definição das políticas educativas"... Estas expressões nada mais fazem do que identificar a escola com o mundo do trabalho. Também no imaginário da maioria dos alunos, pais e professores, a escola é entendida prioritariamente como uma preparação para o emprego. O cidadão fica adiado, o que se pretende formar é ainda o bom trabalhador. Mesmo reconhecendo que a escola prepara mal para o trabalho, uma ampla maioria continua a reduzir a escola à lógica do emprego e da profissionalização. Ora isto é paradoxal se tivermos em conta a críse do emprego e se reconhecermos que a formação, só por si, não cria empregos. Pelo contrário, uma melhor formação aumenta os ganhos de produtividade e consequentemente reduz o tempo de trabalho, ou seja, o emprego. O tempo de trabalho tende a baixar, o que não pode deixar, por si mesmo, de questionar a lógica em que assenta o actual modelo escolar. É também reconhecido que o número de diplomas aumenta mais depressa que o correspondente número de empregos. E se a realidade nos mostra que os diplomas são ainda uma garantia contra o desemprego, também nos mostra que os diplomas ficam cada vez mais caros e são cada vez mais desadequados às necessidades profissionais. Hoje os diplomas servem mais como uma forma de selecção face ao emprego mas sem ter com este uma relação directa e eficaz. Por tudo isto, manter o trabalho como principal referência da educação é irrealista e desadequado. A actual crise do emprego torna mais pertinente discutir a velha questão "aprender para fazer o quê?". Uma questão que não dispensa o seu debate entre os professores, mas está para lá deles, porque só pode ser solucionada por toda a sociedade. Uma questão que põe em causa o modelo social e educativo em que temos vivido. Um outro desafío posto à escola é a sua relação com o saber. Perguntamo-nos que saberes deve a escola reconhecer e promover. A sociedade moderna, racionalista, considerou a ciência imune ao erro. A ciência era a verdade. Acompanhando esta concepção, as instituições escolares foram concebidas como as depositárias da ciência e foi-lhes concedido o monopólio de transmitir o conhecimento, isto é, a ciência, a verdade. Esta concepção está, hoje, esgotada e por variadas razões. Reconhece-se agora que todo o saber científico é relativo, que o erro existe nas mais variadas descobertas científicas, que existe uma pluralidade de saberes que nem sempre são objecto da ciência e que são de por em causa algumas finalidades científicas e os seus benefícios. Os professores - os que estão conscientes destas realidades - sentem-se, hoje, mais inseguros no seu papel de transmissores de conhecimento. O seu papel já não é apenas o de transmitir um saber já feito, possuidor das virtudes da ciência, mas, em larga medida, o de o questionar. Por outro lado reconhecem, frequentemente, que este saber escolar choca com os saberes do cidadão comum e que este tende, cada vez mais, a reivindicar a legitimidade dos saberes por si produzidos. A escola é convidada a abandonar as certezas do saber científico e a "democratizar" o saber que transmite por "negociação" entre os actores. Esta mudança, se abre perspectivas de aproximar a escola de um saber real, não deixa de incomodar os educadores, agora privados das suas certezas e regras de ensinar e aprender. Esta mudança, em relação ao saber, tem reflexos profundos no modo de transmitir o conhecimento e de o apreender. O que está completamente em causa é o tradicional modelo de transmissão do saber, fundado em programas e manuais e no discurso abstracto de manipulação de conceitos e de simbolos. O que está em aberto é um novo lugar para os saberes implícitos de cada um. Saber-fazer, saber-ser, saber-viver, são cada vez mais considerados como os saberes completos. Neste sentido, a educação tradicional não é mais do que uma modalidade particular do saber, uma espécie de discurso sobre o saber. Mas é este discurso sobre o saber que a escola tradicional continua a aplicar, deixando de lado outros saberes e competências essenciais. Daí a sua desadequação ao tempo que vivemos e vamos viver. E se é verdade que nem tudo se pode pedir à escola, também é verdade que ela continua a ter um papel determinante na evolução da educação e na orientação dos alunos. Continua a ser do nível escolar que depende a qualidade do emprego, o acesso à formação continuada, a posição social, a imagem que cada um faz de si e o gosto ou desgosto pelo conhecimento. Por isso a escola tem de mudar. A escola não pode continuar a organizar-se e a pensar-se em torno de saberes, que sendo limitados, acabam por ser factor de marginalização e de exclusão da maioria dos estudantes. O sucesso escolar não pode continuar a ser medido pela capacidade da escola seleccionar elites, tanto mais que a sociedade actual precisa de outros conhecimentos, qualidades e competências a que um largo número de alunos nunca ascende. A escola actual não pode continuar a pensar que o seu objectivo último é dar aos alunos uma certa base de conhecimentos científicos para toda a vida. Precisa de se preocupar em aprender a interagir com os saberes transportados por cada um e com as mudanças aceleradas do conhecimento, contribuindo para que todos os que a frequentam ganhem a capacidade de desaprender e reaprender ao longo de toda vida. Hoje - provavelmente ainda mais no futuro - , a educação tende a difundir-se fora das estruturas que institucionalmente lhe estão consagradas. Mas esta realidade não diminui o papel e a responsabilidade da escola. Esta continuará a ter um papel indispensável na reflexão crítica sobre o conhecimento e a sua estruturação. Por isso as suas funções terão de ser mais diversificadas, mais empenhadas no quotidiano e na vida das pessoas, mais abertas a partilhar experiências, necessidades e saberes. Se quisermos que a escola se não torne de todo obsoleta e demasiado cara, é necessário alterar-lhe o seu papel, ampliando e diversificando as suas formas de intervenção. É necessário que a escola se preocupe tanto com a formação continuada de todos os cidadãos como o faz com a formação inicial das camadas mais jovens da população. Dito de outra maneira, a escola não pode continuar a ser apenas o lugar onde os jovens aprendem. Ela deve ser capaz de participar na formação dos cidadãos ao longo da vida. Deve ser lugar de retorno dos que ali se iniciaram. Para que a escola possa desempenhar esse novo papel é necessário reconhecer, no que respeita à formação continuada, que a separação entre formação profissional e formação pessoal é uma separação artificial. Reconhecer, ainda, que a formação não pode ser reduzida a um mero adestramento para este ou aquele posto de trabalho. Ou seja, o investimento que hoje se faz na formação profissional tem de ser alargado a todas as formas de adquirir saber e a todos os campos da vida. A escola do futuro não será apenas a escola onde se aprende a aprender -o que já não seria mau, se pensarmos no que é hoje a escola- mas terá de ser também a escola onde se reaprende o que se aprendeu, uma escola aberta aos saberes formais e informais e capaz de os cruzar, de os reconhecer e certificar. A escola precisa de uma mudança radical. Tão radical quanto aquela que vai de uma escola que ensinava certezas a uma escola que quer apenas identificar incertezas. José Paulo Serralheiro
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