QUASE nove anos depois da sua morte, acontecida em Janeiro de 1989, podemos repetir que, em cinquenta anos de vida literária sempre activa e actuante, espelhada em mais de trinta títulos publicados, Fernando Namora deixou uma obra que é, sem dúvida, das mais marcantes e expressivas da literatura portuguesa do nosso tempo. De todos os modos se reafirmou no momento último da sua partida e no silêncio final em que ficou no cemitério dos Prazeres, depois de ter sofrido e suportado um dorido embate com a doença que para sempre o derrotaria, o que representa essa obra literária em que se descobre uma pessoalíssima visão humana de saber envolver as suas personagens em enredos e conflitos de gentes e terras que se levantaram no entusiasmo e luta para emendarem o rumo de muitas vidas pelas sete partidas do mundo. Mas na leitura global da obra de Namora e no apelo de memória feito para evocar algumas das histórias mais profundamente humanizadas e enraizadas na nossa realidade social, não é menos significativo lembrarmos muitas das suas melhores páginas de ficção ou de crónica, as reflexões sobre arte e literatura, as observações ou notas biográficas e críticas sobre outros escritores e companheiros de percurso, a par dos muitos poemas que nunca deixaram de habitar a suacasaliterária. Partindo nessa aventura intelectual com um primeiro livro que data de 1938, o autor deO Rio Tristecedo se ligou e empenhou no movimento neo-realista renascente em Coimbra nos anos tormentosos do fascismo e nos pungentes sinais das lutas travadas em Espanha e de que chegavam notícias de tão sangrenta e dolorosa guerra civil. Foi o começo de um itinerário que não teria descanso em cinquenta anos de ofício literário, sempre rigoroso e regular, fazendo avançar as águas desse "rio triste" em cortejo humanizado por muitas outras vozes (mineiros, contrabandistas, camponeses, estudantes em luta, deuses e demónios da medicina, mulheres e homens em combates penosos e desiguais), mas na constante valorização de uma obra que sempre permanece, se republica com regularidade, como acontece com a presente edição das suas "Obras Completas", se estuda e avalia pela compreensão e aceitação dos muitos leitores que através dos seus livros de alguma forma descobriram um sentido próprio de vida. Na verdade, o trajecto literário de Fernando Namora descreve-se, pois, por diferentes planos de expressão, mas por aí se ergue a mesma grandeza humana que se prende a uma visão do mundo que foi de forma imediata o espelho dos problemas dos outros e de muita gente. Julgamos mesmo que poucas vezes se jogou nas histórias dos seus livros, isto é, raramente um eu se sobrepôs aos outros (apesar de sempre falar, claro, da sua riquíssima experiência pessoal), não por não desejar empenhar-se no que escrevera, mas porque tinha da literatura um entendimento próprio de através dela, na força e eficácia da escrita, melhor poder emendar o mundo. E isso nitidamente denunciou no derradeiro livro publicado,Jornal sem Data, em que afirmara: "eu, Eu, EU. É um espectáculo triste ver escritores lúcidos incharem de tal modo o balão do seu caso, o balão da sua pessoa, que nada mais fica do que a expectativa do inevitável estoiro. O mundo todo é deles. É deles. Os outros existem apenas porque não há palco sem auditório". E, aceitando desde sempre a literatura como acto de liberdade e sem constrangimentos, Namora ainda se justifica: "Por mim, que tenho investido na arte uma experiência existencial e não uma simples elaboração cerebral, a escrita impregna-se de uma atmosfera afectiva - mesmo quando os meus livros reflectem uma vincada preocupação social". Por isso, repetimos, nove anos após a sua morte o autor deDomingo à Tardeainda está connosco numa obra que exige ser entendida como o foi há anos no melhor e mais elaborado estudo crítico e biográfico que até hoje lhe foi dedicado por parte de Mário Sacramento (Fernando Namora: a Obra e o Homem,Ed. Arcádia, Lisboa, 1968), na perspectiva global de ter sido consolidada no caminho de muitos anos e, como Namora confessava, "não ter vergonha de acreditar naquilo em que acredito: no cada vez mais raro companheirismo, por exemplo; na dedicação a pessoas ou na fidelidade a objectivos". Mas, por este sentido de vida, na certeza de que"nunca se regressa a parte alguma", Fernando Namora partiu de consciência tranquila e em paz consigo mesmo por ter sabido viver como viveu nesse risco por si assumido. No bem e no mal dos dias vividos, na amizade de alguns e na perfídia de que amargamente se queixara, mas na consoladora confiança de ter erguido uma obra que deve perdurar. Sobretudo por ter sido o retrato e a imagem de um tempo clandestino, por entre muitas lutas, mortes e prisões, que nunca por nunca deixou de denunciar. Sem tibiezas nem cumplicidades, na verdade e rigor que realmente o pôde singularizar como dos melhores criadores que conferiram à literatura portuguesa esse estatuto de ser hoje lida e aceite em várias partes do Mundo. Repetimos: quase nove anos passados sobre a sua morte e no zénite da obra que deixou acabada com esse excelenteJornal sem Data, Fernando Namora ainda está vivo e continua a nosso lado. E assim bem se justifica esta recente edição das suas "Obras Completas". Serafim Ferreira. Fernando Namora OBRAS COMPLETAS Ed. Círculo de Leitores / Lisboa, 1997.
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