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Orlando da Costa - ou um último olhar sobre a infância

Nascido em Lourenço Marques (1929) e tendo vivido a infância e adolescência em Goa, Orlando da Costa radicou-se na capital em 1947 e aqui se licenciou em Ciências Histórico-Filosóficas pela Faculdade de Letras de Lisboa. Até hoje, toda a sua actividade literária se tem desdobrado pela poesia, ficção e teatro, mas é como prosador que atinge maior notoriedade, sobretudo depois de "O Signo da Ira" (1961), "Podem Chamar-me Eurídice" (1964) ou "Os Filhos de Norton (1994).

Retomando esse mundo distante do período colonial português, numa Goa que ainda não tinha luz eléctrica na cidade de Margão, Orlando da Costa regressa ao ambiente de fascínio e de encanto que é o da suas origens indo-portuguesas, com a sentida e poetizada evocação dos hábitos, crenças e costumes das gentes goesas em tempos de colonialismo. Mas o que mais nos impressionou nesse romance tão relembrado "O Signo da Ira", cuja acção também decorre em Goa e numa atmosfera de intenso lirismo que em nada prejudica o seu propósito de fazer "literatura social", porque toda a estrutura narrativa perpassa numa clara experiência vivida e também na sua intenção denunciadora da realidade social e humana que sempre clama por justiça, é agora revivido uma vez mais e sem nenhuma espécie de nostalgia nas páginas deste admirável romance "O último Olhar de Manú Miranda", em que o itinerário de uma vida é recordado pelo tempo de infância e adolescência até à altura de ser gente de fato e gravata, ou seja, revelar-se desde cedo como "um sonhador contemplativo", atento ao meio que em que vivera e aí fizera o seu próprio trajecto pessoal nos altos e baixos de uma educação colonialista, nos valores e rituais mais enraizados, mas confundidos com os da sua própria tradição familiar. E mesmo a passagem de Mánú Miranda pelo seminário aos dez anos não servirá para apagar os instintos naturais, não por ser reduzida a sua vocação religiosa mas porque o apelo do corpo falou mais alto e isso muito desfradara às tias Inês e Leonor, "despojadas dos seus sonhos purpurados" e tão ansiosas de que o seu sobrinho tivesse direito ao solidéu episcopal.

Ora, se no anterior romance de Orlando da Costa ("Os filhos de Norton" 1994), o que se impôs foi o sentido denunciador de um tempo de fascismo dos anos quarenta e cinquenta, retratado ou fixado no simbolismo dos valores os ideológicos ou políticos, nas intrigas e denúncias, nos actos de coragem e de esperança, para assim fazer compreender aos leitores de hoje quem são ou foram os verdadeiros "netos" de Norton (de Matos, entenda-se) e como esse tempo português foi bem difícil, cinzento e terrível de suportar, em "O último Olhar de Manú Miranda" o autor retoma ainda o ambiente de "O Signo da Ira" como forma de regresso aos anos trinta e quarenta (e não importa muito saber se Manú Miranda é de algum modo o "alter ego" de Orlando da Costa), porque ao falar de quem andou à sua volta acaba sempre por falar de si mesmo e por aí traçar as linhas de rumo dessa pessoal peregrinação por Lourenço Marques, Goa ou Lisboa. E, no dobrar dos setenta anos, esse olhar enternecedor ou de denúncia de tantas coisas cruza-se de novo com outras circunstâncias pelos caminhos da vida e assim o derradeiro olhar de Manú Miranda é ainda a forma sublime de saber narrar numa escrita envolvente e calorosa como tudo o que nasce tem o seu fim ou, sobretudo, em memória dessa ode quarta das "Sete Odes do Canto Comum" poder declamar: "Em cada instante de vida / Cabe a pátria do nosso amor".

Por último, podemos dizer que, pela sua forma desenvolta e poética, denunciadora de outros males sociais a que sempre não deixou de estar bem atento, e isso se observa nas páginas finais deste romance ("Entre a vigília e o sono, já não distingue a realidade do sonho, percorre corredores devagar, sobe e desce escadas como o sonâmbulo que já fora e em pleno dia chegou a adormecer de pé, a cabeça encostada ao umbral da porta do quarto.Não chegou a ter do fim do império luso, de que episodicamente fizera parte, qualquer visão apocalíptica, como nunca chegará a pronunciar com igual e total indiferença as palavras invasão e libertação, ao pensar no novo destino já traçado para a sua terra natal"), Orlando da Costa revela uma vez mais, nas páginas deste "último Olhar de Manú Miranda", toda a pujança de um excelente prosador que, sem pressas, tem consolidado uma obra que o consagra entre os nomes mais prestigiados da actual literatura portuguesa.

Serafim Ferreira
critico literário

ORLANDO DA COSTA
O ÚLTIMO OLHAR
DE MANÙ MIRANDA / Romance
âncora Editora / Lisboa, 2000.


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 99
Ano 10, Fevereiro 2001

Autoria:

Serafim Ferreira
Escritor e Crítico Literário, Lisboa. Colaborador do Jornal A Página da Educação.
Serafim Ferreira
Escritor e Crítico Literário, Lisboa. Colaborador do Jornal A Página da Educação.

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