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Crónica escolar de uma desistência anunciada

Ricardo não era uma presença habitual junto do bando de rapazolas que ao fim da tarde se postavam perto do portão da escola.

-Então miúda, já não cumprimentas os amigos ?

Nem olhou.

- Ana, ó Ana...

Interpelada pelo nome, tentou perceber discretamente quem a chamava.

- Olá, Ricardo.

Tinham sido colegas de turma até meados do 10º ano, altura em que abandonou a escola com a promessa de nunca mais voltar a aturar professores e conversas da treta.

Ricardo era o típico puto de rua, reguila e de resposta pronta. A sua vida escolar poderia ser comparada à de um equilibrista em dificuldade, com excepção do Inglês e da Matemática, disciplinas das quais desistira bastante mais cedo. Estudava o mínimo, copiava o máximo e usava todas as estratégias possíveis e imaginárias para sobreviver. No 10º ano acabou o bambúrrio. Escolhera o Agrupamento 1, argumentando que queria ser professor de Educação Física. As notas do 1º período vieram demonstrar o erro da opção que fizera. Daí até à desistência foi um passo. O irmão mais velho arranjou-lhe um emprego nas obras e ele nem pensou duas vezes. Iniciou uma nova vida, longe da escola que sempre achara mais ou menos inútil para quem, como ele, precisava de ganhar a vida.

Vivia com a mãe, a avó paterna e o irmão. O pai abandonara-os e parece não ter deixado muitas saudades. A mãe era uma mulher doente. Fazia limpezas, mas a sua saúde precária não lhe permitia ter um emprego fixo e um salário assegurado em cada fim do mês. O irmão era trolha, mas tinha pouco juízo. Vivia da biscatada e andava com quem não devia. A avó recebia uma reforma miserável. Todo o dinheiro que ele pudesse trazer seria sempre bem vindo.

Em casa ninguém se importou com o facto de ter abandonado a escola. Tinha feito o 9º ano e isso chegava-lhe, ouviu a mãe explicar à Miquinhas, a vizinha da porta ao lado. O irmão aplaudiu a decisão e a avó que nunca tinha percebido muito bem o que o neto, com aquele corpanzil de homem feito, andava a fazer de livros debaixo do braço. A ganhar vícios é o que é, dizia-lhe sempre que podia. Apesar de se sentir aliviado, não deixou de experimentar, lá no fundo, alguma frustração, atenuada, todavia, pelo facto de constatar que a maior parte dos seus amigos de infância ou estavam na merda ou para lá caminhavam. O Chico que trabalhava com o pai e o Zé Tó que era mecânico eram os únicos que pareciam ter-se safado da droga. A Mila e a Vanessa, que continuaram a estudar, também. De resto andava tudo metido no pó, a consumir, a traficar ou a fazer ambas as coisas. E no meio disto tudo ainda havia a Sónia que, aos dezasseis anos, se encontrava grávida e o Alberto, já enterrado num cemitério por causa da porra de uma hepatite.

Ricardo, de facto, nunca teve uma relação muito produtiva com a escola. Só na "Primária" é que as coisas foram diferentes. Aprendera a ler sem soletrar, a escrever sem grandes rasgos e a saber a aritmética necessária para se safar nas provas de avaliação de cada trimestre. Como ele dizia, atinara com a professora que o levou do 1º ao 4º ano, o que no seu caso, veio a provar-se, era meio caminho andado para que as coisas funcionassem bem. No "Ciclo" começou tudo a correr pior. Lucrou pouco, quer em termos pessoais quer em termos de aprendizagem, com a sua permanência na escola, mas aguentou-se, graças à benevolência dos professores mais do que às qualidades do seu desempenho escolar. Reprovou por faltas logo no 7º ano, mas como não conseguia arranjar emprego aos 13 anos de idade, lá se foi mantendo na escola. Continuou a beneficiar de uma avaliação indolente, da sua capacidade de desenrascanço e do ar de miúdo desprotegido que utilizava para se insinuar como melhor lhe convinha. Chegou assim ao 9º ano, levado um pouco como um madeiro que dá à praia, depois de vogar à solta pelo mar. Ainda sem querer ir trabalhar, sem saber como encontrar outras alternativas, entregue a si próprio e julgando que seria possível continuar a fazer na escola o que até aí o deixaram fazer, Ricardo matriculou-se no Ensino Secundário e logo no Agrupamento 1. Não lhe resistiu mais do que umas duas míseras semanas no 2º período, após ter conseguido um dez a Português e a Técnicas Laboratoriais de Biologia e Química. O quinze a Educação Física destoava numa pauta composta por alguns oitos e já muitos setes.

Soube desde muito cedo que não ia aguentar aquele 10º ano. Mas o que é que podia fazer ? Ainda por cima sabia que se deixasse a escola se iria afastar da namorada, por isso o melhor, nessa altura, era deixar as coisas rolar, para logo se ver o que acontecia. Não tinha nada a perder, embora, de facto, também não tivesse nada a ganhar. Mesmo o embaraço que sentia quando recebia as notas dos testes acabava, no fundo, por contar muito pouco. Vergonha, vergonha a sério, só sentia quando perdia os duelos num qualquer meio campo de um rectângulo onde jogasse futebol. Aos 17 anos passara a fazer parte da equipa sénior do clube da zona que militava na 1ª Divisão Regional da Associação de Futebol do Porto. E embora ainda não fosse titular, empenhava-se a fundo na sua vida de futebolista. Não faltava a um treino, cumpria à risca as instruções do treinador, aceitava sempre com boa cara o que lhe mandavam fazer.

No futebol sentia-se gente. No futebol percebia o que andava ali a fazer, mesmo que nem sempre o fizesse bem. Sabia o que era ganhar, empatar ou perder um jogo e na escola não. Se fazia um passe longo bem feito ou uma finta exacta batiam-lhe palmas mesmo que isso não desse em golo. No Secundário, os dez que conseguiu nos dois testes de Português, apesar de serem notas positivas, nunca lhe deram direito a uma palmada nas costas ou a um sorriso de aprovação. Era como se não existisse, ao contrário do que acontecia com o três a Matemática que o tornou alvo da atenção de toda a turma, por força do discurso trocista do professor. No futebol quando era desarmado e a outra equipa iniciava de imediato um contra-ataque, sabia que tinha errado, sabia que iria ouvir das boas do treinador ou de um colega mais velho, mas sabia também que logo seria incentivado na jogada seguinte, quando um adversário lhe surgisse pela frente. Num campo de futebol tinha a certeza que acreditavam nele, apesar de estar muito longe de ser um jogador experiente e perfeito. Na escola, e sobretudo naquele primeiro período em que frequentara o Ensino Secundário, não. É certo que estudava muito pouco, é certo que era um aluno desatento, é certo que tinha feito uma escolha errada, mas mesmo assim...

- Ouvi dizer que qualquer dia rebentas a escala. Como é que consegues estudar tanto?

- Que remédio... E tu, Ricardo ?

- Lá me vou safando como posso.

Mentia-lhe. Só o futebol é que ia valendo a pena naquele dia a dia a carregar massa, tijolos e sacos de cimento. Não se sentia arrependido por ter largado a escola, sobretudo depois de ter compreendido que não ia lá aprender nada, mas tinha saudades da sua vida de estudante.

- A vida está para ti, miúda.

- Pois está...aguentar todos os dias aulas que são uma pastilha. Passar a vida a correr entre as explicações de Matemática e Física. Relatórios estou farta deles. Ler o Garrett, por alma de quem ? Estudar até aterrar. E ainda por cima ter de aturar os pais, e mais alguns professores, a dizer que a gente não faz nada. Saco um dezasseis a Matemática e até parece que reprovei. Bom, Ricardo...tenho que ir.

Recebeu um beijo e viu-a partir. Se uma pessoa como a Ana se queixa da escola...

Ariana Cosme e Rui Trindade
Universidade do Porto


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 99
Ano 10, Fevereiro 2001

Autoria:

Ariana Cosme
Fac. de Psicologia e Ciências da Educação, Univ. de Porto
Rui Trindade
Faculde de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade do Porto
Ariana Cosme
Fac. de Psicologia e Ciências da Educação, Univ. de Porto
Rui Trindade
Faculde de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade do Porto

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