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A propósito do centenário da morte de G. VERDI

Conta-se que, estando VERDI muito doente e a toda a hora se esperando o desenlace final, toda a rua do hotel onde agonizava o genial criador fora coberta de palha pela população de Milão. Assim se procurava impedir que o ruído das carruagens perturbasse os últimos momentos de vida daquele a quem a população da Itália ficava devendo alguns dos mais belos e comoventes trechos operáticos de todos os tempos. "Chama-se a isto amor", comentava a locutora da RDP2 a quem ouvi contar a história.

Mesmo que se tenha de relevar a esta história o que ela deve ao espírito do tempo e do lugar - em Verdi encarnou profundamente um romantismo exacerbado ao serviço duma causa que foi a da unificação do povo italiano - a verdade é que o comentário da locutora em nada perde a sua pertinência, se considerarmos que nele se traduz o que é da essência da expressão artística - o sentimento de uma imediata identidade com o objecto amado. "Chama-se a isto amor"...E "isto", então, o que é? É todo um processo de acção auto-transformante pela qual a própria realidade exterior é também transformada. A pobre realidade material da palha transforma-se em rico instrumento colectivo de homenagem, uma forma possível de música, na medida em que torna possível o silêncio, que é constitutivo de toda a estrutura musical. Que se possa mobilizar a palha para homenagear Verdi no momento da sua morte só não é um cruel absurdo porque ela é uma forma de silêncio respeitoso na cidade.

A acção auto-transformadora da arte (particularmente a musical) foi desde sempre encarada como um elemento de grande valia ao longo da história da educação. Todavia, à medida que os sistemas educativos nacionais se tornaram acessíveis ao comum da população escolarizável, assistiu-se a um processo em que a componente artística foi perdendo, progressivamente, relevo a ponto de hoje subsistir no currículo básico - e com as dificuldades que se sabem - a educação visual e tecnológica.

Não parece difícil identificar o significado deste fenómeno de inversão da importância curricular da área artística no processo educativo. Andando cada vez mais associado à instrumentalidade, à aplicabilidade e à rendibilidade dos saberes, o currículo actual não dispõe de tempo nem de espaço que assegurem as experiências de expressão da subjectividade, que promovam um trabalho de auto-transformação que se traduza em actividades auto-finalizadas, isto é, guiadas por uma lógica dos afectos e não por uma lógica dos cálculos, justificada recorrentemente nos perfis da empregabilidade. E o que é mais perturbante é que, tanto sociológica, como cultural e antropologicamente, nunca tanto como hoje a educação artística reclama figurar nos currículos da educação básica. Basta atentar na incapacidade dos currículos actuais para canalizar a energia e a criatividade das nossas crianças e adolescentes. Ou estaremos nós convencidos de que indisciplina e a violência se resolvem com mais regulamentos?

Talvez Verdi - agora que passa o seu centenário - possa dar uma ajuda...Até com palha se faz silêncio...

Manuel Matos
Universidade do Porto


  
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Edição:

N.º 99
Ano 10, Fevereiro 2001

Autoria:

Manuel Matos
FPCE, Univ. do Porto
Manuel Matos
FPCE, Univ. do Porto

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