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As ameaças à lingua

Num artigo publicado, em Novembro passado, no Jornal de Letras - "Da língua portuguesa e seu ensino" - José Saramago manifestava grande preocupação pelo futuro da língua portuguesa, que considera estar no caminho de "acabada degradação" e cuja responsabilidade atribui, em grande parte, à escola, "que (se) tão mal ensina a escrever, não ensina, de todo, a falar." E porque esta, "não intervindo, como efectivamente não intervém, no processo edificador da fala, demite-se de uma responsabilidade em que deve ser parte privilegiada, e, pelo contrário, vai receber o influxo negativo dos surtos negativos externos, assim 'oficializando', indirectamente, o errado e o vicioso contra o harmonioso e o exacto. E é facilmente verificável que a escola, não só não ensina a falar, como fala mal ela própria."

Não está em causa o julgamento que Saramago faz do "produto acabado" e ninguém negará a importância do papel que cabe à escola - da pré-primária à universitária - no ensino da língua escrita e falada. Mas, sendo também a escola um epifenómeno da sociedade, reflectida quer na formação dos professores, quer na orientação dos programas, não seria razoável endossar à escola aquela enorme parte de responsabilidade de que a sociedade, globalmente, se exime ou alheia, na cómoda e displicente compreensão de que a escola se encarregará, como quem lima as arestas de um diamante em bruto, de completar o que a família e o meio não conseguem ou, pior do que isso, contraproduzem. Argumentar-se-á que tudo passa pelo interior da escola, onde se aprende; mas o que poderá ela contra o que, no exterior, se desaprende?

O que acontece, na verdade, é que, logo nos primeiros graus, se espera e exige da escola a responsabilidade e o esforço de que todos os outros agentes da educação se desoneram, a ponto de o educando, quando desapoiado na família, sentir que, na escola, está a ser instruído compulsivamente. Espera-se que ele escreva sem erros, conheça o significado das palavras, articule correctamente as frases, leia e interprete escorreitamente um texto, enfim, respeite a língua e, se possível, ame a literatura, ao menos na medida em que esta - nas palavras de Miguel Torga - não seja "motivo de mortificação académica" nem concorra para que "a apetência literária morra na escola."

Facto é que só por milagre de Atena e Minerva conjugadas o estudante, desperto para as letras apesar de programas e práticas de ensino eventualmente desinteressantes, será, quando a "compulsão" terminar, um leitor assumido se, no meio familiar, profissional ou social em que se insere, a leitura não for produto de consumo corrente e a língua (escrita e falada) for sujeita a tratos de polé.

Ainda viria menos mal à língua se ela fosse apenas um mero instrumento de comunicação. Então falar-se-ia de prosódia ou de gramática, do "errado e o vicioso contra o harmonioso e o exacto" e até se poderia comparar a norma actual com o "tão alto grau de beleza e precisão do século XVII" e as "intermitências fulgurantes (com) Almeida Garrett em primeiro lugar" - como desejaria Saramago, pensando certamente num Português-padrão, já que ele foi "tantas" línguas quanto as épocas e os locais em que foi falado.

Esta realidade explicará as reservas que afloram, no Trópico, quando os académicos se reúnem (geralmente por iniciativa dos portugueses) para firmar acordos linguísticos. Desengane-se quem, em nome da Lusofonia, sonhar que, no Brasil, em Angola ou em Moçambique, se falará em obediência a prontuários postulados por decreto, mesmo que o Português (nas "versões" nacionais) esteja cada vez mais "cercado".

Saramago também alertou: "Não esqueçamos que as línguas se cercam umas às outras, não esqueçamos que a língua inglesa as cerca a todas e a todos nos cerca" e que "hoje, uma língua que não se defende, morre", no que todos os falantes do Português estarão de acordo. Mas cada um irá defender a "sua" língua ("a língua é de quem a fala") à sua maneira, no seu lugar e no seu tempo. E eles são diferentes em cada país e para cada povo, em consonância com as necessidades da comunicação e o sentido das identidades nacionais - portanto, e também, constituindo um atributo de soberania.

Em 1925, no Brasil, quando as correntes vanguardistas consubstanciavam um Movimento Modernista proclamado três anos antes, que partira de um radicalismo linguístico-cultural, um dos seus fundadores, Mário de Andrade, escrevia a outro vanguardista, Carlos Drummond de Andrade: "... Estou num país novo e na escureza completa duma noite. Não estou pitorescando o meu estilo nem muito menos coleccionando exemplos de estupidez. O povo não é estúpido quando diz 'vou na escola', 'me deixe', 'carneirada', ?mapear'', 'besta ruana', 'farra', 'vagão', 'futebol'. É antes inteligentíssimo nessa aparente ignorância porque sofrendo as influências da terra, do clima, das ligações e contactos com outras raças, das necessidades do momento e de adaptação, e da pronúncia, do carácter, da psicologia racial, modifica aos poucos uma língua que já não lhe serve de expressão porque não expressa ou sofre essas influências e as transformará numa outra língua que se adapta a essas influências."

Foi certamente por distinguir este sentimento autonómico que, há muito pouco tempo, a Academia de Letras do Brasil chamou ao seu seio o moçambicano Mia Couto, cujo discurso literário, autonomizado da língua-padrão portuguesa, exprime uma identidade "sui generis".

Mas a língua é também uma alavanca do pensamento e, neste aspecto, o comum falante português terá sido sempre o intérprete deficitário que continua a ser, constrangido por obliterações mais ligadas ao foro psicológico do que ao domínio da gramática, certamente em resultado de uma secular insularidade geográfica e relacional. Observe-se como se comporta o auditório, hesitante ou intimidado, perante o palestrante que, no final da sua oração, convida ao diálogo; ou compare-se a fluência verbal com que discorre, perante um microfone, um entrevistado brasileiro ou africano e um português, independentemente dos seus graus de instrução; ou o discurso magistral de um português e um luso-tropical: o primeiro, em regra, prolixo e enfático, tributário da retórica; o segundo, solto e despojado, herdeiro da oralidade.

É claro que haverá sempre uma língua literária ou académica e uma língua utilitária, com usos diferenciados, e nem uma mesma gramática, nem o dicionário mais abrangente, pela inclusão de vocábulos de várias origens linguísticas, alterarão os factos: cada povo lusófono retirará do Português a sua versão, defendendo-a (ou não) de acordo com as necessidades do quotidiano.

A Portugal cabe, seguramente, defender o "padrão"original, independentemente do interesse ou da vontade de quem o recebeu por imposição histórica. Mas cabe defendê-lo, sobretudo, dentro de portas: na escola, na rua, nas famílias, nos livros, nos jornais, na rádio, na televisão - contra o "cerco" interno do desamor, da ignorância e da displicência (com que até alguns escritores "desconstroem" a língua, em nome de uma pretensa criatividade) ainda antes do "externo", que se estreita na proporção em que a globalização dos meios de comunicação, - superlativados pela Internet - ao reduzir a necessidade (e portanto a competência) de falar, escrever e memorizar, ameaça transformar o "navegante" desprevenido numa espécie de Caliban.

Leonel Cosme
escritor, investigador

  
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Edição:

N.º 98
Ano 10, Janeiro 2001

Autoria:

Leonel Cosme
Escritor - Jornalista, Porto
Leonel Cosme
Escritor - Jornalista, Porto

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