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João Pedro Messeder - um discurso poético inovador

Talvez por desejar ser "abertura" e não corte ou incisão com outros caminhos literários já percorridos, Fissura deve ler-se como um só poema, a linha de água por onde escorre a essencialidade de um discurso poético em que João Pedro Messeder, neste seu novo livro, recupera os sinais de fogo e de inocência pela música solar e nocturna de cada verso. Mas, em relação aos anteriores livros publicados, a brevidade de expressão, o rigor das palavras e o sentido das imagens, a emotividade comovida dos poemas consente que se entenda Fissura como o desvendar de pistas ou inquirições possíveis de uma mesma viagem marcada por uma nítida contenção e musicalidade. Ou talvez como a "história" de quem se confessa ou nos fala das profundas matrizes por onde correm os ventos e sombras antigas, as águas e lugares da própria navegação para dar a conhecer algumas das feridas que permanecem, os lugares que foram de descoberta ou a descida ao mundo da infância por onde divagam todas as constelações de sonhos e pesadelos revividos na memória dos medos, das ruas, da casa e dos livros que dentro dela sempre moraram:

A casa ao mundo já fechada
com seus rumores familiares
a mãe: um sino na distância
as canções de uma rouca telefonia.

Pelas suas três partes em que o livro se reparte ("Algumas Feridas", "Ciência dos Lugares"e "Cenas Infantis") entendem-se bem as próprias linhas de força porque no que subjaz no discurso de João Pedro Messeder, no muito que se sugere e não se diz, se pode descobrir, na limpidez do verso ou no despojamento vocabular da sua estrutura poética, uma voz de fogo que consome os desejos ou permite que a vigília se recubra de uma inocência que chega à superfície em instantes de maior aflição, como no poema "Pai em Vigília":

Acode-me esta noite
em que o anjo se prepara
para olhar fundo nos olhos
os olhos da inocência.

E nesta forma de assim decifrar as lunações da sua galáxia, João Pedro Messeder, mesmo quando recorre a poetas de sua preferência pessoal, como Luísa Dacosta ou Carlos de Oliveira, afirma-se lúcido na clareza com que constrói ou tece o seu discurso, porque no rasto do que declara Octávio Paz, existe neste livro um fio poético, subentendido ou claramente visível, de «querer matar a morte com o ligeiro golpe de asa de uma imagem». E é assim que a palavra poética ganha uma dimensão capaz de proclamar os exageros do mundo pela absoluta consciência que Fissura revela logo no primeiro poema:

Quando nem a breve sombra se vislumbra
ficam apenas sobre a mesa branca
pequenas pedras de arestas aguçadas
vestes de um luto desmaiado
que um vento desmedido levará.

Porque o poema sempre traz à memória o que se esqueceu e é mais profundamente aquilo que ainda somos, o sentido objectivo da poesia de João Pedro Messeder, se assim a quisermos entender, dá a verdade da nossa própria condição, a recriação do homem pela imagem:

À noite o quarto enche-se de palavras
que não chegam a descer sobre o caderno
Escuto o quase nada
que cai sobre o sono dos vivos
e abre páginas de livros.

E se acaso se repete uma ou outra imagem ou vocábulo é (ainda) por João Pedro Messeder saber e conhecer, na memória de Jorge Luis Borges, que «toda a linguagem é um alfabeto de símbolos cujo exercício supõe um passado que os interlocutores partilham». Mas, nos acordes musicais de Beethoven ou Mozart que ressoam de longe e também comparecem nos poemas deste livro, dizemos que pelos lugares orbitados de outros mundos o Poeta percorre e constrói o seu espaço, cria a propositada alquimia do sonho e do acto em que algumas feridas se confundem com as imagens ou cenas do mundo de infância, num sonho desconfiado de toda a viagem ser feita sem regresso ou, ainda na lembrança destes versos de Herberto Helder: «A morte confundida fora e dentro. / Quando não há palavra que se diga e apenas uma imagem / mostre em cima / os trabalhos e os dias submarinos».

Por último, nesta forma calorosa de saudar João Pedro Messeder por este seu terceiro livro, dizer que Fissura bem mereceu o "Prémio Literário Maria Amália Vaz de Carvalho - 1999", instituído pelo Município de Loures, e não deixamos de dizer que o sentido poético confirmado permite esperar que o percurso deste Poeta melhor se consolidará em obras posteriores.

Serafim Ferreira
crítico literário/ Lisboa

JOÃO PEDRO MESSEDER
FISSURA, poemas
Prémio Literário
MARIA AMÁLIA VAZ DE CARVALHO/1999
Ed. Caminho / Lisboa, 2000.


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 98
Ano 10, Janeiro 2001

Autoria:

Serafim Ferreira
Escritor e Crítico Literário, Lisboa. Colaborador do Jornal A Página da Educação.
Serafim Ferreira
Escritor e Crítico Literário, Lisboa. Colaborador do Jornal A Página da Educação.

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