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Crónica sobre uma escola imaginária...

Para as férias do Natal, Helena tinha-lhes proposto que em pequenos grupos escrevessem um texto, em inglês, sobre a escola onde gostariam de viver. A ideia surgira--lhe após terem trabalhado sobre uma entrevista com dois adolescentes, uma rapariga protestante e um rapaz católico, que frequentavam uma das poucas escolas que na Irlanda do Norte, o Hazelwood Integrated College, se recusava a aceitar os alunos em função do credo político-religioso da comunidade onde tinham nascido.

De um modo algo confuso, e para ela até certo ponto inesperado, os miúdos inundaram-na de perguntas acerca da questão irlandesa. Condescendera mesmo em desrespeitar uma regra sagrada, a da obrigatoriedade do uso da língua inglesa em todas as situações de comunicação que ocorressem no decurso das aulas. O empenho dos alunos justificava-o. Tentara responder às perguntas e dispusera-se a ouvir tudo o que eles tinham para dizer. A inquietação que manifestavam, e as razões que iam encontrando para a explicar, surpreendeu-a. Mas foram sobretudo alguns comentários marginais sobre as escolas que a deixaram perplexa. A proposta para o trabalho de férias surgira nesse momento, mas, curiosamente, não parecia ter suscitado um entusiasmo por aí além.

Por isso, quando em Janeiro os trabalhos solicitados lhe começaram a chegar às mãos acompanhados das inevitáveis perguntas, isto conta para a nota, stôra ? Vale tanto como um teste?, não deixou de pensar se a sua ingenuidade não teria prevalecido, mais uma vez, quando imaginou que lhes podia estar a oferecer uma oportunidade para poderem expressar o que pensavam sobre a escola e sobre a sua condição de alunos.

A leitura dos textos, contudo, foi-lhe dissipando as dúvidas. Apesar do carácter académico do trabalho e das dificuldades de comunicação que o inglês poderia suscitar, houve quem arriscasse aceitar o desafio. Os the teachers, at our school, are in general very comprehensive e the school has a large number of computers eram, indubitavelmente, as frases mais utilizadas. A possibilidade da Internet ser utilizada como um recurso educativo era, igualmente, objecto de um amplo consenso nos trabalhos que corrigira. A referência a programas mais úteis e menos extensos constituía outro dos tópicos eleitos para imaginar a escola desejada. Dois dos grupos tinham-se atrevido a imaginar um quotidiano escolar sem provas globais e um deles chegou mesmo a proclamar o fim dos exames no 12º ano e a extinção do próprio "numerus clausus" como medidas a aplicar na escola que imaginavam. What kind of adults can we be, if we are oblige d to accept a course that we don?t want to ?

De todos os textos, havia um, no entanto, que se distinguia dos demais. Não porque estivesse melhor redigido ou tão pouco porque as ideias que veiculava fossem as mais arrojadas ou sequer as mais originais. O que lhe chamara a atenção naquele trabalho era, paradoxalmente, o desrespeito pelo tema proposto, como se esses alunos não fossem capazes de imaginar uma escola diferente daquela em que viviam.

Circunscreviam-se ao presente, parecendo não conseguir, ou não querer, arriscar-se a perscrutar o futuro. E isso incomodou-a. Não havia ponta de cinismo no texto, mas pressentia-se nele uma espécie de amargura, se bem que pueril, demasiada precoce para adolescentes na casa dos dezasseis, dezassete anos. Era, enfim, um trabalho assumidamente céptico. Um grito. Não lhe interessava se estava mal escrito, se tinha erros ortográficos, construções sintácticas mal conseguidas ou se o léxico utilizado era inadequado. Ficara como que aprisionada na veemência de um texto onde a escola era vista por aqueles miúdos como um espaço cruel e terrivelmente desumano. Se não conseguiam aprender, eram avaliados como gente incapaz. Caso fossem bem sucedidos, eram, não só os melhores alunos, como também aqueles a quem mais facilmente se reconhecia outros tipos de qualidades pessoais.

Concluíra isto pelo tipo de exemplos que os miúdos foram encontrando para construir aquele texto. Why teachers understand better the problems of a good pupil in a test, than the mistakes of a bad student ?

Porque é que para se ser bom aluno é necessário ter explicações a algumas disciplinas ? E quem não as pode pagar, como se arranja ?

Mesmo reconhecendo que havia professores que, para além de competentes, se importavam com eles, perguntavam para que servia a maior parte da informação que estes lhes transmitiam. As únicas coisas boas que encontravam na escola, fora um ou outro professor, eram, afinal, os colegas e os intervalos entre as aulas.

Releu o texto e voltou a surpreender-se com o facto de não haver uma ponta de esperança nas suas palavras. Sabia o que todos aqueles alunos sofriam como estudantes do Ensino Secundário. Tinha consciência do peso daquele quotidiano, das suas aulas, do modo como se avaliava e da forma como essa avaliação se ia tornando, à medida que o ano lectivo avançava, no princípio e no fim de tudo aquilo que se fazia. Mesmo assim, perguntava-se, como era possível que, naquele texto, não houvesse sequer uma referência à possibilidade da escola funcionar de forma diferente. Nem imaginando.

Ariana Cosme / Rui Trindade
Universidade do Porto


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 98
Ano 10, Janeiro 2001

Autoria:

Ariana Cosme
Fac. de Psicologia e Ciências da Educação, Univ. de Porto
Rui Trindade
Faculde de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade do Porto
Ariana Cosme
Fac. de Psicologia e Ciências da Educação, Univ. de Porto
Rui Trindade
Faculde de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade do Porto

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