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Ensino Recorrente - O "parente pobre" do sistema educativo

O Ensino Recorrente em Portugal tem ainda um bom caminho a percorrer se quiser dar resposta aos objectivos a que se propõe. É um sub-sector com potencialidades, como reconhecem os investigadores que se têm dedicado a esta área, embora a oferta e a capacidade de mobilização se encontrem longe de satisfazer as necessidades. Isto, apesar de em 1997 o investimento, directo e indirecto, ter rondado os 60 milhões de contos. Um sub-sector onde se reconhece a existência de uma rede nacional de ensino recorrente "consolidada" - estabilizada no ensino básico e em fase de generalização no secundário -, mas à qual falta ainda uma aposta política forte, para que deixe de ser encarado como "mero sistema subsidiário" do ensino regular.

Uma das conclusões do Relatório de Avaliação do Ensino Recorrente (RAER), da autoria de Jorge Pinto, Lisete Matos e Luís Rothes, publicado em finais de 1998, refere, aliás, que a "marginalidade da educação de adultos" no seio das preocupações e políticas educativas coexiste com uma "clara centralidade do Estado" no sector, tanto nos processos de elaboração das políticas, como na tendência para este se reconhecer (...) como "instância educativa previligiada".

Além disso, adiantam ainda os autores daquele documento, o ensino secundário no ensino recorrente depara-se com uma "oferta desarticulada, insuficiente para fazer face à grande oscilação da procura, e a formação técnica, que possibilita a qualificação profissional, confronta-se com o facto de estar prevista para adultos, mas dirigir-se a um público essencialmente juvenil".

Assim, de acordo com os dados disponibilizados entre os anos lectivos de 1992/93 e 1996/97, a procura do ensino recorrente é dominada por um grupo maioritário de jovens até aos 30 anos, na sua esmagadora maioria com um percurso de insucesso e de abandono escolar, e por um grupo minoritário dos restantes grupos etários, também este com histórias de insucesso e de abandono escolar, ao qual se juntam formandos que nunca chegaram a frequentar determinado ciclo ou nível de ensino.

E algumas das conclusões são surpreendentes: ao contrário do que se possa pensar, o ensino recorrente do 1º ciclo é igualmente frequentado por jovens. Segundo dados do Subprograma Educação de Adultos do Prodep, em 1993 60% dos formandos deste nível de ensino tinham até 25 anos e apenas 28% tinham 45 ou mais anos, sendo as mulheres maioritárias no escalão 34 ou mais anos.

Também no 2º ciclo a maioria dos formandos são homens no escalão etário até aos 25 anos, sendo os restantes escalões etários dominados pelas mulheres. Do universo de alunos, 72% tinham até 30 anos. No 2º e 3º ciclos, a maior percentagem de formandos situa-se na faixa etária dos 14-19 anos, o que, no entender dos autores, "demonstra tratar-se de jovens recém-saídos do ensino regular".

Apesar de não haver informações respeitantes à totalidade do território nacional, a área técnica de formação mais procurada no 3º ciclo é a de Administração, Serviços e Comércio (41,8%) seguida de Artes Visuais (26%), tendo menor peso as áreas de formação associadas ao sector secundário, como Electricidade e Electrónica (17,7%), Metalomecânica (8,6%), Animação Social (3,8%) e Construção Civil (1,9).

Quanto ao ensino secundário por unidades capitalizáveis - através do qual os alunos podem progredir nas diferentes disciplinas à medida das suas capacidades -, introduzido em 1992/93 e generalizado a partir de 1996/97, os dados disponíveis permitem adiantar que nas regiões correspondentes às direcções regionais de educação do Centro e do Alentejo a procura se eleva nos cursos de carácter geral, sendo mais equilibrada no Algarve, com valores muito próximos, verificando-se exactamente o contrário na região de Lisboa, onde há maior procura pelos cursos de carácter técnico.

Quanto à procura por níveis etários, verifica-se que é essencialmente juvenil, atingindo mesmo os 54,2% na faixa dos 18-22 anos na região de Lisboa. Também aqui se verifica a tendência de a procura ser marcadamente masculina nos primeiros escalões etários e progressivamente feminina nos escalões etários seguintes, diz o estudo.

Uma presença numerosa dos mais jovens no ensino recorrente, que evidencia, nas palavras dos autores, "a incapacidade que até agora se verificou de generalização das condições de sucesso para todos na escola".

Algumas causas para o insucesso

As taxas de conclusão do ensino recorrente são extremamente baixas. Ainda de acordo com números disponibilizados pelo RAER, nenhum dos ciclos consegue que pelo menos metade dos formandos inscritos sejam certificados. O que mais se aproxima deste valor é o 2º ciclo, com uma média que ronda os 48%, sendo que o 1º ciclo possui uma percentagem de certificações na ordem dos 20 a 30%. Preocupantes são os dados adiantados em relação ao 3º ciclo e secundário, com, respectivamente 4-5% e 0-1%.

Como causas para este quadro negativo, e partindo de alguns documentos e relatórios elaborados pelas próprias DRE's, os autores referem que uma das principais "dificuldades ou incongruências" se verificam ao nível da organização e gestão do sistema, onde se constata a "ausência de uma estrutura coordenadora local", num sistema que é de si organizado localmente. Por outro lado, refere-se ainda, a "progressiva escolarização do sistema e a sua rigidez contrariam a flexibilidade e inovação" que deviam ser seu apanágio. Outra das causas identificadas prende-se com a já referida "marginalidade" a que este sistema de ensino é votado, refletido, nomeadamente, na ausência de um projecto educativo próprio, nem de capacidades para desenvolver "um projecto autónomo", por tal não estar previsto.

Um desses exemplos, entre muitos outros, é o caso da Escola Secundária Rodrigues de Freitas, no Porto, onde, de acordo com Celeste Marçal, coordenadora do Ensino Recorrente daquela escola, "foi preciso uma luta tremenda" para contemplá-lo no projecto educativo global.

"O primeiro trabalho que chegou da comissão não tinha uma única linha sobre o ensino recorrente", diz esta professora, para quem, apesar de haver uma "tentativa de passar a responsabilidade para as escolas" neste domínio, inerente ao princípio de autonomia e gestão, tal poderá constituir "um passo em frente".

"O que é preciso é que o ensino recorrente se afirme como um ensino de adultos, com projectos de formação em interacção com o ensino diurno, mas, principalmente, com os contextos de trabalho".

Mas as conclusões do documento não se ficam por aqui. As dificuldades em posicionar formandos nas unidades adequadas, as turmas grandes, a organização dos ritmos do tempo escolar ou a falta de recursos, são outros dos factores apontados, sendo ainda referidos a "extensão dos programas" ou a "desadequação de alguns guias de aprendizagem".

Apesar de se reconhecer que ao longo dos últimos anos se avançou na construção de "itinerários educativos próprios", estes não estão dotados da flexibilidade necessária para "lidar com a diversidade de situações e de públicos". Que, como já atrás se pôde verificar, é heterogéneo e pode oscilar entre faixas etárias muito diversas.

Maria Ferreira, de 42 anos, trabalhadora dos serviços, desistiu de estudar há mais de vinte. Nada que a demova, porém, de voltar a conviver com colegas mais jovens e de, inclusivamente "aprender com eles". Decidiu voltar à escola por uma questão de valorização pessoal, mas pensa prosseguir os estudos e formar-se em psicologia.

"Embora já tenha uma idade avançada, tudo é possível", diz, afirmando sentir-se mais motivada para concluir o ensino secundário do que quando frequentava o ensino regular. "Estudar à noite não é fácil, principalmente pelos dois filhos que tenho de deixar em casa, mas sinto-me com vontade de seguir em frente. E nesse aspecto, os professores têm-me ajudado muito..."

Mais crítico do sistema é Miguel Gama, de 27 anos, para quem não faz sentido haver aulas sobrepostas no horário: "Dessa forma é impossível pensar em terminar a formação o mais rapidamente possível, e é para isso que servem as unidades capitalizáveis". Além disso, não compreende a razão pela qual tem vários professores nas diferentes unidades, factor que, na sua opinião, contraria o princípio de pedagógica. "Às vezes parece que há mais professores do que alunos, e o ministério têm de pô-los a trabalhar...", explica com uma certa ironia. Apesar destes constrangimentos, admite que continua a valer a pena estudar. "Temos é de esforçar-nos a dobrar."

Professores sentem falta de formação adequada

A falta de um corpo de formadores estável e vocacionado para a educação de adultos, bem como a ausência de uma formação específica, são igualmente apontados no relatório como factores concorrentes para o insucesso no ensino recorrente.

Maria do Carmo Cruz, presidente do conselho executivo da Escola Secundária Filipa de Vilhena, possuidora de uma larga experiência neste sub-sector, reconhece que os professores têm alguma razão de queixa quando referem que não têm os instrumentos apropriados de integração e motivação, admitindo igualmente ser difícil a um professor, com horário misto, trabalhar as duas vertentes.

"Mas os professores também devem fazer um esforço no sentido de encarar o ensino recorrente como uma obrigação social da sua parte e trabalhar na auto-reorganização dos seus métodos de trabalho", assumindo-se, neste caso, como mediadores do conhecimento. "O ensino recorrente é uma necessidade social, indispensável à integração plena de muitos na sociedade e no trabalho", afirma.

O ensino recorrente, considera, por seu lado, Celeste Marçal, continua a ser "desvalorizado pela sociedade", em parte porque "o Estado ainda não olhou com atenção para os problemas do ensino de adultos". É em parte por esse motivo, diz, que, na generalidade, "os professores reagem mal ao facto de serem colocados no ensino nocturno".

Uma das principais queixas dos professores deve-se ao facto de terem de trabalhar com alunos de unidades capitalizáveis diferentes na mesma sala de aula. "É muito difícil porque não há uma planificação de grupo, tudo é feito em função do aluno e das suas necessidades educativas", sublinha Adelaide Queirós, actual coordenadora do Ensino Recorrente da Filipa de Vilhena. Depois, adianta, "os manuais de aprendizagem distribuídos pelo ministério da educação nem sempre preenchem os requisitos deste tipo de formação e raramente correspondem às metodologias utilizadas pelo professor".

Assim, ser professor no ensino recorrente decorre sobretudo de um "processo de auto-aprendizagem", refere, lembrando-se de que ela própria sentiu no primeiro ano "muitas dificuldade" em gerir uma turma com quase vinte alunos situados em níveis de aprendizagem diferentes. "Mais do que preparação científica, é necessário termos muita preparação em termos pedagógicos", afirma, porque as referências do professor são sempre retiradas do ensino regular.

Por seu lado, Carla Almeida, professora de Ciências do Ambiente no ensino recorrente há cinco anos, considera que trabalhar com alunos de várias faixas etárias pode constituir uma "relação extremamente recompensadora".

"Aprende-se muito, mas é preciso recorrer à criatividade e a estratégias completamente diferentes daquelas a que estamos habituados com os alunos mais novos. É um autêntico desafio". Especialmente, conta, quando numa sala de aula se encontram dez alunos em unidades diferentes. "Se dedicamos quinze minutos a um grupo de alunos, não nos podemos esquecer que existem outros a quem também temos de dar atenção. Uma das soluções a que recorro é organizar grupos de trabalho temáticos".

Os formadores do ensino recorrente, de acordo com as conclusões do Relatório de Avaliação do Ensino Recorrente, são docentes dos vários grupos pedagógicos do ensino regular, podendo trabalhar em regime de destacamento, acumulação, horário completo, complemento de horário ou horas extraordinárias.

De acordo com informação proveniente de outras fontes, nomeadamente dos investigadores que procederam à avaliação do Subprograma Educação de Adultos do Prodep, entre 1990 e 1993, coordenado por J.F. Almeida, os formadores do 1º e 2º ciclo constituem um corpo docente "essencialmente jovem", já que 73,8% desse universo tinha idades compreendidas entre os 20 e os 39 anos. Ainda segundo aquele estudo, 32% dos formadores da formação geral tiveram a sua primeira experiência de ensino recorrente naquele programa e quase 65% não permaneceram ali por mais do que dois anos.

Outra das críticas constantes no relatório é o facto de a oferta de cursos no ensino recorrente não obedecer a uma lógica coordenadora, já que não existe qualquer entidade com capacidade de "estabelecer os cursos que devem funcionar, selecionar os espaços mais adequados - sejam ou não escolares -, realizar parcerias ou assegurar uma gestão mais articulada de recursos humanos e materiais". As escolas são disso um reflexo, e por não possuirem também elas mecanismos formais de coordenação - sendo confrontadas com grandes oscilações na procura -, acabam, inevitavelmente, por "optar pela criação de turmas com muitos formandos, na expectativa de desistências elevadas".

É nesse sentido que surge, em finais de 1999, a Agência Nacional de Educação e Formação de Adultos, organismo sujeito à dupla tutela do Ministério da Educação e do Ministério do Trabalho e da Solidariedade Social, cujo um dos principais objectivos passa por "assegurar respostas articuladas que permitam o reforço das condições acesso a uma educação e formação ao longo da vida" e trabalhar no sentido da constituição de um sistema autónomo de educação e formação de adultos. Um órgão coordenador surgido no âmbito de uma das recomendações inscritas no RAER, que começa agora a dar os primeiros passos, através, designadamente, da criação dos primeiros centros de Reconhecimento, Validação e Certificação de Competências.

No entanto, nas escolas é ainda grande o desconhecimento relativamente à Anefa e às suas finalidades. "Ainda não analisamos detalhadamente as potencialidades de interacção com este novo organismo", refere a este propósito Celeste Marçal.

Ricardo Jorge Costa


  
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Edição:

N.º 98
Ano 10, Janeiro 2001

Autoria:

Ricardo Jorge Costa
Jornalista do Jornal A Página da Educação
Ricardo Jorge Costa
Jornalista do Jornal A Página da Educação

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