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Ainda a propósito de Alfabetização, ensino recorrente, segunda oportunidade... ( segmento 1 de 2 )

Em Portugal nunca se chegou a pôr em acção um Plano Nacional de Alfabetização, o ensino de "segunda oportunidade" não atingiu os objectivos previstos e o ensino regular manteve taxas de insucesso elevadas. À entrada do novo milénio o nosso país tem 62,6% da população activa com um nível de escolaridade que não ultrapassa os seis anos e cerca de 30% dessa população semi-qualificada, ou não qualificada, a nível profissional ( dados do Inquérito de Emprego do Instituto Nacional de Estatística,1996, e do Ministério do Trabalho e Solidariedade, 1998 ). Deveria ter sido, desde há muito, reforçada a qualificação escolar e profissional da população. Tal não foi feito e os resultados estão à vista. Por outro lado, as profundas mudanças que ocorrem debaixo dos nossos olhos (mundialização da economia, avanços tecnológicos acelerados, alterações profundas das relações sociais, alterações na organização do trabalho e emprego, etc...) têm acentuado as desigualdades, levando os diversos actores sociais a tentativas de resposta a este estado de coisas, com objectivos, naturalmente, diferentes.


Como professor do ensino recorrente (2º ciclo), desde há sete anos, e como dirigente sindical há muito mais, sempre me preocupei com a análise da evolução do Ensino Recorrente e com as questões que lhe estão associadas. O mesmo fizeram muitos outros professores ao longo dos últimos anos. A constatação de que algo começava, definitivamente, a ter que ser alterado (mais claramente no 3º ciclo e no ensino secundário) levou a aprofundar o conhecimento sobre o ensino recorrente a nível nacional e a uma mais visível apresentação de propostas de melhoria do seu funcionamento. Lembro os debates, textos preparatórios e conclusões de Conferências e Congressos dos últimos anos, da FENPROF e dos seus sindicatos, e apelava, desde já, à (re)leitura da resolução do V Congresso do SPN. O debate foi colocado, definitivamente, junto dos professores, que exigem, também, uma melhor divulgação pública das propostas governativas para o sector. Em abono da verdade deve dizer-se que a Secretária de Estado Ana Benavente, em finais de Janeiro de 1999, "correspondeu" a esse desejo convocando uma conferência de imprensa para anunciar a posição do Governo no que dizia respeito a alterações a introduzir no ensino recorrente assim como a novas linhas de intervenção na educação de adultos. Em Julho do mesmo ano uma delegação da Fenprof, da qual fiz parte, reuniu com o Ministro da Educação Oliveira Martins e com a Secretária de Estado Ana Benavente, no sentido de esclarecer melhor as linhas de intervenção do Ministério da Educação, apresentadas na conferência de imprensa citada, já que, no terreno, surgiam medidas contraditórias com o enunciado.

Procurarei tentar, resumidamente, fazer o ponto da situação em que se encontra a concretização dessas propostas, que o actual ministro, que se saiba, não inviabilizou.

Tal como disse em entrevista o Professor Alberto Melo ( Presidente do Grupo de Missão para a Educação e Formação de Adultos e que participou no 1º Encontro do Ensino Recorrente promovido pela Fenprof em Novembro de 1999, em Lisboa), para a mudança de posição do Ministério da Educação terá estado a percepção que Ana Benavente teve dos resultados da Conferência Mundial da UNESCO sobre Educação de Adultos que se realizou em Julho de 1997, em Hamburgo. Rigorosa, ou não, a opinião de Alberto Melo, o certo é que, pouco depois (Outubro de 1997 e Março de 1998), foram solicitados dois estudos que vieram a ter grande importância: "Documento Estratégico para o Desenvolvimento da Educação de Adultos "(Melo, Queirós, Silva, Salgado, Rothes e Ribeiro, 1998) e "Relatório de Avaliação do Ensino Recorrente "(Pinto, Matos e Rothes, 1998). A opinião pública terá retido desses trabalhos, infelizmente, apenas o que veio anunciado em grandes parangonas: os 63 milhões de contos que o ensino recorrente e o ensino nocturno, em vias de extinção, tinham gasto no ano lectivo de 1996/97.

Os dois relatórios estiveram certamente na origem do conteúdo da conferência de imprensa de Ana Benavente de Janeiro de 1999 na qual, pela primeira vez, o Ministério da Educação faz um balanço da evolução do ensino recorrente nos últimos anos, propondo algumas alterações de curto e médio prazo, anunciando, ao mesmo tempo, o lançamento de projectos de educação e formação de adultos. A alteração do público previsto para o ensino recorrente, uma resposta escolarizada pesada que não contemplava saberes e competências já adquiridos e uma certificação baixa foram as tónicas mais evidentes do discurso da Secretária de Estado (que não assumiu o erro da generalização do sistema de unidades capitalizáveis ao ensino secundário em 1996).

Como medidas de curto e médio prazo surgem, então: o "Programa 15-18" com o qual se procura separar os jovens (não trabalhadores) dos adultos, um despacho que permite uma avaliação extraordinária aos alunos com relativo sucesso (mas que não altera nada de essencial do sistema), o lançamento de uma experiência de um modelo diferente de ensino recorrente ( de que se viria a perceber melhor os contornos na reunião, já referida, de Julho de 1999, no Ministério da Educação) e um conjunto de iniciativas que se pretendiam alternativas ao actual ensino recorrente para o público adulto ( de acordo com o plano de actividades do Grupo de Missão ). Em relação às três primeiras medidas refira-se o completo acordo com a abertura da possibilidade dos mais jovens não terem como única via a frequência nocturna e com a tentativa de melhorar significativamente o processo administrativo-pedagógico que sustenta o ensino recorrente. Sobre as intituladas vias EFA (Educação e Formação de Adultos) propostas, vale a pena determo-nos um pouco mais.

Com o objectivo de estabelecer vias diferenciadas para a educação e formação de adultos (preferencialmente cidadãos maiores de 18 anos), apresentou o Ministério da Educação um esquema base com um plano organizativo, pedagógico e de funcionamento cuja operacionalização se pretende realizar, a nível local, através de uma rede de parcerias (públicas e privadas). Desde Maio de 1998, altura em que se constituiu o Grupo de Missão para a Educação e Formação de Adultos, que se caminhava para a criação de uma instituição independente, tendo como pressuposto uma estratégia de construção de um sistema descentralizado e autónomo em relação ao sistema escolar. Tal instituição, que se desejava promotora de um percurso educativo com currículos, níveis e certificação que não fossem copiados do sistema escolar, acompanhados de um reconhecimento e validação de competências adquiridas pelos adultos durante a vida, surge, finalmente, em Setembro de 1999. Está criada a ANEFA - Agência Nacional de Educação e Formação de Adultos, cuja Comissão Instaladora toma posse em Abril do corrente ano. Com tutela de dois ministérios (M. da Educação e M. do Trabalho e Solidariedade) tem hoje uma lei orgânica cuja base partiu de um importante estudo de um grupo de docentes da Universidade do Minho (ANEFA. Estudo para a construção de um modelo institucional. Lima, Afonso e Estêvão,1999). Em entrevista à revista "Saber Mais" Ana Benavente clarificou os objectivos da ANEFA: "Esse projecto significa passar a barreira do som! Querermos reconhecer a cada adulto o direito a ver formalmente validados os seus saberes, o que significa um grande esforço prévio para definir as competências que são necessárias para o 6º ano, o 9º ano, o ensino secundário...Aquilo que se pede à educação e formação de adultos, hoje em dia, é ter respostas adequadas à diversidade de situações e poder responder a grupos-alvo prioritários...Tudo isto é realmente um grande desafio, sobretudo se tivermos em conta que, segundo a nossa concepção de educação e formação de adultos, em todas as instituições, em todos os espaços sociais, desde as autarquias, às empresas, às associações culturais, recreativas, de carácter educativo, pode e deve haver essa oferta.

Portanto, entendemos esta Agência não como um organismo que vem criar novas formas de organização, mas que vem, sobretudo, animar, incentivar, coordenar aquilo que corresponderá, cada vez mais, a uma dinâmica social.".

Com base nos pressupostos enunciados foi considerada uma prioridade a construção de um Referencial de Competências-chave para a Educação e Formação de Adultos, tendo como referência experiências de outros países europeus. Encomendado a uma equipa de especialistas foi produzido um documento de trabalho que na sua apresentação explicita: "Este referencial, que se insere num quadro conceptual mais vasto de educação e formação ao longo da vida, foi concebido como um instrumento devidamente fundamentado, coerente e válido para a reflexão, para a tomada de decisões e para a avaliação da educação e formação de adultos em Portugal, podendo vir a desempenhar a tripla função de:

  1. quadro orientador para o reconhecimento e validação das competências de vida;
  2. base para o "desenho curricular" de educação e formação de adultos assente em competências-chave;
  3. guia para a concepção da formação de agentes EFA.

Não cabe neste registo apresentar o desenho do referencial, pelo que se propõe a leitura de "Educação e Formação de Adultos. Referencial de Competências-chave.Volumes I e II. Alonso, Imaginário, Magalhães e outros. ANEFA, 2000". Gostaria, apenas, de dizer, sinteticamente, que as áreas de competências-chave serão: linguagem e comunicação, tecnologias da informação e comunicação, matemática para a vida e cidadania e empregabilidade, e manifestar concordância com Luísa Alonso quando propõe uma maior reflexão sobre a natureza e especificidade desta última área ( o próprio conceito de "empregabilidade", só por si, merece um profundo debate, como deixa sugerir Ricardo Petrella num interessante artigo - "Cinco armadilhas para a educação" - no número de Outubro da edição portuguesa do "Le Monde Diplomatique" ).

Para finalizar, cabe uma referência aos cursos piloto EFA, que constituem uma oferta integrada de educação e formação, com um currículo se desenvolve em torno de uma componente de formação de base e de uma formação profissionalizante. Não sendo claro o seu papel, no futuro, face ao desejável desenvolvimento do ensino recorrente, por exemplo, é importante procurar perceber a proposta que nos é apresentada para curto prazo. Vocacionados para públicos adultos pouco qualificados têm como objectivo "contribuir, a prazo, para a redução do défice de qualificação escolar e profissional da população portuguesa, potenciando as suas condições de empregabilidade"procurando constituir-se como campo de experimentação de: "referenciais de competências-chave", "processos de reconhecimento e validação de competências" e de "percursos de formação personalizados, modulares, flexíveis e integrados". Não sendo possível, também, explicitar o processo de organização e gestão da formação, no entanto, para que o quadro fique minimamente inteligível, referem-se as entidades promotoras dos cursos, o desenho curricular de um curso, o modelo organizacional e os custos.

Os cursos são propostos pelas entidades candidatas e premiadas pelo Concurso Nacional de Boas Práticas de EFA, por Associações, IPSS, Autarquias, Empresas ou outras, desde que estejam acreditadas pelo Instituto para a Inovação da Formação (INOFOR). As entidades promotoras poderão celebrar protocolos de cooperação com entidades externas, preferencialmente com os responsáveis concelhios do ensino recorrente e dos centros de emprego ou de formação profissional do IEFP e com estabelecimentos de ensino (este ano funcionam, no Norte, quatro dos dez cursos experimentais ).

Um percurso de formação "Básico 1" ("equivalente" ao 1º ciclo) compreende um total de horas entre as 385 h e as 780 h ,com uma componente de base de tipo modular (módulos de 25 h) e de uma outra de formação profissionalizante a oscilar entre as 220 h e as 300 h (parte delas desejável em contexto de trabalho).

O modelo organizacional, a nível do curso, terá um responsável pelo projecto -representante da entidade promotora EFA - e uma equipa de formadores coordenados por um mediador - que não tem funções docentes, com a responsabilidade de acompanhar o grupo de formadores e formandos(no máximo, de 15) ao longo do processo de formação. A nível regional serão constituídas equipas EFA ( Norte, Centro, Lisboa, Alentejo e Algarve) compostas pelo representante da Unidade Regional da ANEFA e pelos representantes das Direcções Regionais de Educação e das Delegações Regionais do IEFP. A nível nacional haverá uma equipa responsável pelo acompanhamento e execução global do projecto e uma equipa de consultoria.

No que diz respeito a custos há vários elegíveis - bolsas para formandos, vencimento/hora de formadores, produção de material, equipamentos, vencimento de mediador, etc... - devendo realçar-se que estes cursos se inserem no quadro do PRODEP III (2000 / 2006). Estão disponíveis mais de 30 milhões de contos, mas a articulação com outras das medidas desse Programa pode colocar à disposição muito mais dinheiro. Que se justifica que seja bem gasto. Só um acompanhamento permanente desta problemática poderá evitar o que, no passado recente, muitas vezes aconteceu no nosso país - o desperdício ou a não aplicação de verbas existentes.

Pude ouvir, recentemente, na Conferência Europeia "Educação e Formação de Adultos na Europa", que se realizou em Évora, em Junho passado, na qual participei em representação do SPN, elogios ao Governo pelo caminho original que se traça, mas também vozes cautelosas, de experientes técnicos nacionais e estrangeiros, que alertaram para o controlo e correcta aplicação das verbas em jogo, consideráveis para o país que somos, assim como para uma profunda discussão do modelo que se pretende desenvolver.

Luís Rothes, na última edição d? "A Página da Educação", coloca, também, o dedo na ferida:

"...não há instituição nem medidas políticas milagrosas.."

"...outra das preocupações a ter em conta será a de criar quer uma consciência social alargada sobre a importância desta questão [a educação de adultos] quer entre os próprios profissionais que têm consciência de que é necessário introduzir mudanças para que o seu trabalho seja gratificante."

Em Março de 1997 o Conselho Nacional de Educação aprovava a Recomendação 1/97, da qual, pela sua importância, retiro as seguintes passagens:

"... repensar globalmente a educação e a formação pede, ao mesmo tempo, abertura de espírito à diversidade e à inovação, e convicções determinadas sobre princípios e valores. O Conselho Nacional de Educação apela a que os múltiplos parceiros das políticas e das práticas educativas tenham sempre em conta os quatro princípios seguintes:

  1. a diversificação das instâncias e modos educativos implica que a escola deixou de ser concebível como a única instituição educativa do nosso tempo. Isso não significa, contudo, que tenha deixado de ser uma instituição central, designadamente para assegurar a educação básica para todos. Não significa, também, que deixe de constituir um objecto incontornável do investimento público, em particular para garantir os princípios da máxima inclusão social e da igualdade de oportunidades;
  2. o reconhecimento da multiplicação das agências e dos processos de socialização e formação das pessoas deve ser claramente assumido, de forma descomplexada e aberta. A formação ao longo da vida faz-se em diferentes ciclos, em diferentes contextos, de diferentes maneiras e para diferentes finalidades, e de todas estas diferenças se faz a sua riqueza ...
  3. o que quer dizer, especificamente, que, se o mundo da educação precisa hoje de um renovado espírito de abertura a outros mundos e outras lógicas - do trabalho, da iniciativa, da ciência, da técnica, do lazer, da relação, da cidade, da cultura -, não é para perder a sua natureza e autonomia próprias....
  4. a educação que conta, aquela em que devemos apostar e investir, porque é a que garante maior retorno, a cada indivíduo e à sociedade no seu todo, é uma educação de banda larga - uma educação orientada para o desenvolvimento de valores, atitudes, capacidades e competências que favoreçam a aprendizagem, a adaptabilidade e a relação...

Na perspectiva do Conselho Nacional de Educação, não é possível avançar no reforço da articulação entre educação e formação ao longo da vida, sem ter em conta estes quatro princípios: centralidade da escola; qualificação educativa das instituições e práticas de formação; autonomia de uma educação aberta às relações com todas as formas e fins de actividade; prioridade à formação de banda larga. " (sublinhados meus).

Saibamos responder aos desafios propostos !

Carlos Midões
Professor da E.B. 2,3 Dr. Flávio Gonçalves-Póvoa de Varzim
Membro da Direcção do SPN e do Conselho Nacional da FENPROF


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 98
Ano 10, Janeiro 2001

Autoria:

Carlos Midões
Professor de Matemática, Vila do Conde
Carlos Midões
Professor de Matemática, Vila do Conde

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