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Armindo Rodrigues - evocação de um Poeta quase esquecido

Nunca soube ao certo se o que mais me agrada e cativa na poesia de Armindo Rodrigues é a sua evidente força irónica ou a carga lírica e emocional, com evidentes ressaibos lorquianos vislumbrados no conjunto da sua poética, ou a simpatia pessoal que desde sempre tive por quem de algum modo me ensinou a olhar o Mundo para lá das quatro paredes da própria solidão. Guardo do poeta de Romanceiro a memória de saber, há largos anos, que pelos caminhos de descoberta de autores que foram e são da minha preferência, muito fiquei a dever a Armindo Rodrigues na leitura de livros por si tão fielmente traduzidos (Malraux, Fournier, Cholokov, entre outros) na paixão e entusiasmo dessas coisas e por ele aprendi desde cedo a olhar e a admirar a "obra poética" de quem, por entre uma certa timidez e humildade, quase pede licença para existir como poeta e nunca foi capaz, pelo correr dos seus quase noventa anos de vida, de abandonar a sua "barricada".E, por entre o convívio silencioso dos poemas, na frontalidade das posições ideológicas, das muitas "histórias" contadas em seu redor, refiz o "mito" de saber da sua existência nos encontros de acaso pelas ruas e livrarias lisboetas do Chiado - a Medicina sempre no caminho do Poeta, numa outra forma de ter voz e estar assim na vida e na poesia.
Médico e poeta ligado à corrente neo-realista desde o seu primeiro livro (Voz Arremessada ao Caminho, 1943), Armindo Rodrigues (1904-1993) ergueu ao longo de cinquenta anos de poesia uma Obra Poética que, no conjunto dos dezoito volumes, se impõe na fulgurância da sua expressividade e merece ser lida e relida sob outros olhares, não só na perspectiva do próprio alinhamento ideológico, que desde longe se revelou coerente e firme pelas linhas cruzadas de atitudes e posições bem próximas do neo-realismo poético dos anos 40 e 50, mas sobretudo pela importância literária de que toda ela se reveste ou, como afirmara óscar Lopes, ser o Poeta de Quadrante Solar, "adentro do neo-realismo, um actualizador de velhas tradições, sobretudo lírico-epigramáticas e sentenciárias". Ou no sentido dialéctico de sempre inquirir a realidade social e humana que o rodeava, sabermos ainda que na vida e na poesia sempre Armindo Rodrigues ergueu a sua voz, falou alto e com justiça, participou corajosamente no acto de emendar o rumo da História que, como poucos de nós, viveu por dentro nas linhas cruzadas da própria vida e do tempo que lhe coube viver:

Toda a justiça é injusta, porque julga,
toda a ordem desordem, porque impõe,
toda a verdade errada, porque muda.

Ora, pela importância poética do seu "exemplo" e ainda na justeza das posições assumidas, na verticalidade de ter sido, ontem e sempre, um grande e bom companheiro de muita gente, Armindo Rodrigues foi um velho romeiro de quem devo saudar nesta hora de evocação e na releitura de Quadrante Solar, neste modo de o reencontrar e ver que à sua volta não anda hoje muita gente ou os leitores não lhe fazem muita companhia. Mas se a vida defendeu o Poeta e nos consente, para nosso íntimo prazer, se possa escutar a voz que ainda se ergue na defesa de valores que em consciência não traiu, e no sonho com que encheu as horas do seu fadário ("O sonho e a vigília andam a par.
/ A par o que se nega se promete. / Nada é nada, se apenas se afirmar
"), só nos resta estender a mão em saudação fraterna e reler alguns dos poemas de Armindo Rodrigues que nos ficaram como memória de quem, mesmo na forma tão desejada de um sincero ou propositado "apagamento" pessoal, continua a desdobrar-se no caminho, na certeza de que o eterno mistério da poesia (e da vida) se alcança ainda neste mundo. E em memória de Jacinto do Prado Coelho, grande estudioso da literatura portuguesa, evocar estas suas palavras sobre o poeta de Romanceiro:
"Voltada ideológica e emocionalmente para o futuro, trazendo até nós, viva, uma longa e variada tradição, a obra de Armindo Rodrigues parece querer significar que não é arrancando as raízes culturais dum povo que o seu futuro se constrói".
Por último, dizer que Armindo Rodrigues não merecia estar assim tão esquecido e, ao abrir por acaso um dos volumes da sua Obra Poética, parar intencionalmente nesta Ode ao Tejo e dizer com o Poeta, fitando o rio largo e longo que nos corre aos pés, por entre certos sinais de tristura e desencanto, mas também de esperança redescoberta, na lembrança saudosa desses dias de Abril já quase perdido de vista:

Náufrago entre o passado e o futuro,
um conjuro-o, o outro tento-o depreender.
Mas a ambos os vejo sem os ver.
O que passou faz-me a memória escuro.
O que virá como o hei-de merecer?
(...)
Mudos voltamos ao Rossio onde
há sempre um vão rumor de gente vã.
Torna-me a alegria brusca e sã.
Também depois da noite que nos esconde
Romperá uma lúcida manhã.

Serafim Ferreira

Armindo Rodrigues
QUADRANTE SOLAR
ED. Imprensa Nacional-Lisboa, 1984


  
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Edição:

N.º 96
Ano 9, Novembro 2000

Autoria:

Serafim Ferreira
Escritor e Crítico Literário, Lisboa. Colaborador do Jornal A Página da Educação.
Serafim Ferreira
Escritor e Crítico Literário, Lisboa. Colaborador do Jornal A Página da Educação.

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