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Um público para o futuro

Qualquer acto de criação artística ou intelectual existe por si só, a partir do momento em que é criado. Um pintor conclui uma tela e ela passa a ter existência própria. Um artista termina uma instalação e ela passa a ser um objecto independente. Um escritor acaba um livro e ele passa a ter a sua própria história. Cada um destes actos de criação pode viver por si só, sem ser "consumido" pelo público. Mas não me parece que esse seja o objectivo dos criadores. Parece-me que quem produz arte quer que ela passe para outros domínios. Que seja absorvida pelas outras pessoas. Que desencante nelas sensações e reflexões.

Vem tudo isto a propósito do projecto Plano XXI, uma iniciativa louvável que quis dar a conhecer a arte portuguesa contemporânea em terras da Escócia. Umas cinco dezenas de pessoas ligadas à arte portuguesa marcaram presença para mostrar videos, instalações, fotografias. Também para discutir temas da arte contemporânea, mostrar cinema e dar a conhecer música que se faz actualmente em Portugal. Apesar de a organização minimizar a questão da pouca afluência de público (porque sabe bem como estas coisas são difíceis de entrar nos hábitos das pessoas), há coisas em que vale a pena pensar.

A primeira ideia que me vem à cabeça é a de saber como se sentirão as pessoas que são convidadas para discutir temas como os museus ou a produção de filmes em Portugal que se confrontam com uma plateia de uma dezena de pessoas, sendo que metade está ligada à organização do evento. Depois, ponho-me a pensar no que sentirão os artistas que são envolvidos num projecto com esta dimensão mas que pouco chegou ao público. Finalmente, penso nos organizadores que conseguiram apoios de peso e que ficam sem saber o que se passa com o(s) público(s).

A comparação com Portugal é inevitável. Afinal, não é só no nosso pequeno país que as pessoas parecem pouco interessadas em descobrir outras culturas, outras formas de ver o mundo. Já é tempo de começarmos a pensar que muitas das críticas que fazemos a nós próprios também podem ser feitas a outros, supostamente mais desenvolvidos em aspectos como a cultura e a arte. O Plano XXI mostrou que não é só Portugal que vive para o seu umbigo. Não é só em Lisboa e no Porto que se vê sempre o mesmo grupo de pessoas quando se trata de exposições, espectáculos ou concertos que saem do "rame-rame" do costume. Em Glasgow houve pouco interesse pela arte contemporânea portuguesa, como acredito que no Porto haveria pouco interesse pela arte contemporânea escocesa. Estamos quites.

O interesse ou a mera curiosidade por coisas que saem do nosso (quase sempre) pequeno mundo são muito limitados. Eu sei que a vida rápida e complicada dos dias de hoje deixa pouco tempo para ir a procura de experiências diferentes. Mas o que me faz confusão é que, precisamente nos dias de hoje, com a suposta globalização e com um acesso gigantesco a informações sobre todos os cantos do mundo, ainda se resista tanto ao desconhecido.

Vou cair num lugar-comum mas é inevitável. Acredito que as escolas podem e devem ter um papel fundamental neste processo. Porque os miúdos têm uma curiosidade natural por tudo o que é diferente. Se não for aproveitada, depois perde-se no comodismo do dia-a-dia. Sei que há muitos professores que o fazem. Mas parece-me que é preciso muito mais. Não basta fazer exposições com postais sobre Londres ou Paris quando os miúdos estão a aprender Inglês ou Francês. É preciso mostrar-lhes outras coisas; fazer dos miúdos um público para o futuro. Seja nas artes tradicionais, nas modernas, na música, no teatro ou na literatura.

Os professores que viajam podiam tirar partido disso não só com a família e com os amigos, mas também com os alunos. Mais uma vez, sei que há professores que o fazem. Fizeram-no comigo. Lembro-me bem da primeira vez em que ouvi falar a sério sobre arquitectura. A minha professora primária, no fim da década de 70, foi a Brasília. Voltou maravilhada e contou-nos a história de uma cidade que começou do zero, que foi projectada para a modernidade, que não tinha nada a ver com as cidades cheias de história que nós conhecíamos. Às vezes bastam pequenas coisas para despertar interesses que podem ser determinantes.

Já agora, gostava de ver uma transformação nas tradicionais actividades extra-lectivas. Gostava de ver os alunos portugueses a descobrirem mundos contemporâneos. E não é preciso levá-los à China ou ao Japão para lhes mostrar culturas completamente diferentes da nossa. Se lhes mostrarem filmes dessas paragens, talvez esses cantos do mundo fiquem num cantinho da memória deles. Talvez, num dia destes, venham a fazer parte de um público interessado pelo que se passa no resto do mundo.

Hália Costa Santos
Universidade de Leicester/UK


  
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Edição:

N.º 96
Ano 9, Novembro 2000

Autoria:

Hália Costa Santos
Jornalista
Hália Costa Santos
Jornalista

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