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Nos Estados Unidos a prosperidade fica cara

A prosperidade económica dos Estados Unidos é constantemente propagandeada e causa fascínio. Mas nem tudo o que parece é o que parece. Esta prosperidade, para lá dos custos que acarreta a outros povos, fica cada vez mais cara aos próprios americanos, que têm de trabalhar cada vez mais para custear a sua vida privada e familiar.

Ed Hahn é advogado num importante escritório de Washington. Os processos amontoam-se de tal modo no seu escritório que, muitas vezes, tem de passar a noite no local de trabalho, fazendo turnos de três em três horas, alternados com o seu sócio, para descansar.
Semi Cece é esteticista. Nos fins de semana trabalha com o marido na venda de comida. É o modo a terem dinheiro para pagar a universidade da filha.
Charlene Bobel é empregada da empresa telefónica Verizon. Fez greve, no último Verão, para exigir a limitação de horas extraordinárias obrigatórias.
Todos eles dizem a mesma coisa: "o trabalho devora-nos".
Em Portugal faltam estatísticas que nos ajudem a pensar. As disponibilizadas pelo Instituto americano de Políticas Económicas (EPI) são elucidativas. Os homens norte-americanos trabalham em média 49 horas semanais e as mulheres 42 horas. Acresce que no país se paga em média apenas duas semanas de férias por ano.
Há 15 anos, 13% dos norte americanos trabalhavam mais de 50 horas semanais. Essa percentagem subiu agora para 15%. Vinte por cento dos trabalhadores afirmam que, para fazerem face aos seus compromissos económicos, precisam de fazer horas extraordinárias, pelo menos um dia por semana.
Em termos médios um americano trabalha por ano mais 350 horas do que um trabalhador europeu e mais 70 horas do que um japonês.
De acordo com o relatório do EPI a prosperidade é real, "os salários aumentaram no último ano, mas não necessariamente a qualidade de vida".
Segundo o mesmo relatório, os pobres têm vindo a ser obrigados a trabalhar cada vez mais. Os cortes efectuados nos benefícios sociais obriga a esse aumento da carga de trabalho. Por seu lado a classe média tem de trabalhar cada vez mais duro como forma de fazer face ao grande aumento dos custos da saúde, da habitação e da educação.
Esta necessidade de investir cada vez mais tempo no trabalho tem enormes consequências e custos sociais. "Os norte-americanos não têm tempo para se sentar num café ou num bar, como fazem os europeus", diz o relator do EPI. Dado que 70% das mães trabalham, a vida em família não é mais do que uma quimera. Mais de setenta por cento dos americanos não passam quase tempo nenhum com os filhos e as refeições em família são uma raridade.
Ed Hahn raramente passa um fim de semana com a mulher e as filhas. O filho de Semi Cece, de 11 anos, vive sozinho com a sua televisão. "Nós temos mais dinheiro, isso representa mais trabalho, ele entende", diz a mãe.
Os poucos pais norte-americanos que conseguem algum tempo para dedicar aos filhos não têm tempo para si próprios. O estudo mostra que os pais dispõem em média de uma hora por dia para eles, menos 54 minutos do que há vinte anos. E as mães podem dispor para si próprias de 50 minutos diários, ou seja, menos 42 minutos do que dispunham em média há vinte anos atrás.
Todos reconhecemos que na América o trabalho possui um forte valor moral. A maneira como os americanos encaram o trabalho e o lazer é muito diferente da forma como o fazemos na Europa. Mesmo assim começa a notar-se nos EUA um movimento em crescendo contra a prosperidade económica à americana, considerada por muitos como tirana em demasia.
Exemplo dessa nova forma de ver a prosperidade é dado pelos pilotos da United Airlines os quais criaram perturbações sérias á empresa quando decidiram recusar fazer mais horas extraordinárias. Também recentemente, enfermeiros e enfermeiras em greve num hospital de Washington bateram-se fortemente contra horários considerados demasiado pesados e desumanos.
O peso das horas extraordinárias, e o seu uso indiscriminado pelas empresas, como forma de gerir a componente da mão-de-obra, é de tal ordem que levou alguns Estados, como o de Nova Jersey e Maine, a aprovarem leis que limitam o número de horas extraordinárias que é possível exigir aos trabalhadores.
Os dados agora divulgados sobre as relações entre trabalho e prosperidade na América do Norte parece corroborarem a ideia de que no interior de cada sociedade e entre sociedades se vive a várias velocidades. Mas mostra também que problemas que muitas vezes se imaginam superados se mantêm em movimento numa espécie de circulo de fatalidade. A sobre-exploração do trabalho humano parece assim não ser animada de um movimento linear tendente à superação do problema, mas antes se mantém como característica básica da sociedade capitalista, passando apenas por episódios mais brandos ou mais agudos em função das necessidades de produção de lucros.
Reconhecemos que os problemas de hoje dizem cada vez mais respeito ao gnoma humano, aos organismos geneticamente modificados, à identidade sexual, ao prazer e aos novos modos de viver em comum. Preocupa-nos o controle do espaço público sobre o qual se sobrepõem cada vez mais as redes informacionais ou o nosso controle sobre os serviços públicos. Não ignoramos a necessidade de prestar atenção a questões como a clonagem, o controle das telecomunicações, os direitos de acesso e distribuição do conhecimento e da informação, os problemas das indústrias de conteúdos, a conservação do património e do direito de acesso à fruição da natureza. Mas estes problemas que ?sendo do futuro ? são cada vez mais nossos, não nos dispensam de continuar a preocupar-nos com os velhos problemas: os do trabalho e do salário e que eles continuam a condicionar-nos a vida. É que a sobre-exploração não foi ainda superada.
Estes "mundos", vividos a várias velocidades no interior de cada sociedade e em sociedades diferentes têm de continuar a merecer a nossa atenção nas escolas. A não ser que queiramos passar ao lado da vida ou que a cidadania nos seja indiferente.

José Paulo Serralheiro


  
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Edição:

N.º 96
Ano 9, Novembro 2000

Autoria:

José Paulo Serralheiro
Professor e Jornalista. Director do Jornal a Página da Educação.
José Paulo Serralheiro
Professor e Jornalista. Director do Jornal a Página da Educação.

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