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Guião para uma história verdadeira

Como no filme "nenhum a menos"
- possibilidade de uma prática pedagógica includente

À Zilda Chaves, professora alfabetizadora e a tantas outras professoras que no cotidiano da escola vão tecendo os fios de uma complexa rede de um aprender/ensinar/aprender comprometido com as crianças das classes populares.


Manhã de sábado: Zilda percorria as calçadas de um bairro popular no centro da cidade do Rio de Janeiro. Vielas estreitas, sobrados marcados pelo tempo e pela falta de conservação. Paredes geminadas, emendavam cômodos atrás de cômodos, numa interminável sucessão de casebres e famílias. Zilda batia em todas as portas: Estou procurando uma aluna minha, Roseane, com quase cinco anos e que tem um irmão menor, Breno. Você conhece?

A procura foi em vão.

Faziam quase 30 dias que Roseane não aparecia. Zilda, a professora da turma sentia falta daquela aluna falante e interessada. Preocupava-lhe a saúde da menina, que viera semanas antes, com a perna cheia de marcas. A conversa com a mãe deixara escapar uma confidência dolorosa: seu marido batia nela e nos filhos.

A Direção da escola já alertara das regras da instituição, trinta dias de faltas consecutivas e a vaga estaria perdida.

Você não tem outra coisa a fazer se não esperar Roseane voltar ou não. Você é doida de ir para a cidade procurar uma aluna. Esta fala, dita por algumas de suas colegas de trabalho, não lhe saía da cabeça. Zilda vai até a direção da pré-escola e pede que a aluna não seja eliminada. No portão da escola, a professora repete o mesmo apelo a todas as mães: se você encontrar a mãe da Roseane, não deixe de me avisar, porque ela está quase perdendo a vaga. Uma rede de preocupação e solidariedade com a situação de Roseane ia se tecendo. Na turma, a rodinha, os desenhos, as pinturas, a ida ao parquinho, as conversas e discussões pareciam continuar como sempre, mas a ausência de Roseane estava lá. Zilda não aceitava como natural esta situação. Sabia o quanto é difícil o acesso a uma vaga na Pré-Escola do Instituto de Educação do Rio de Janeiro - uma escola pública. Os dados do IBGE confirmam que não é apenas nesta escola. Das 21 milhões de crianças de 0 a 6 anos no Brasil, só 6,3 milhões ( 30%) freqüentam a escola. E quanto mais pobre é a família da criança, menor é o acesso às creches e pré-escolas. Os dados mais uma vez falam por si: apenas 50% das crianças de 4 a 6 anos, cuja renda da família é de até meio salário mínimo, (1) freqüentam escolas de Educação Infantil. Esta porcentagem alcança 90% quando se trata de uma renda familiar superior a cinco salários.
Por ter trabalhado alguns anos com Zilda nessa Pré-escola, conheci de perto sua história de mulher e de mãe, lutadora, forte, determinada e sua história de professora da escola pública. Por 19 anos atuou no ensino supletivo, ensinando jovens da camada popular que têm sido rotulados, discriminados e excluídos do ensino regular. Por experiência própria sabia da importância de uma vaga na escola pública. Zilda lutara com dificuldades. Abandonada pelo marido e morando no subúrbio do Grande Rio, enfrentou, por anos seguidos, a viagem nos precários trens da periferia, acompanhada por seus dois filhos pequenos, um em cada braço, conforme ela nos conta, para dar aulas no centro e assegurar o minguado salário. Com a venda de produtos de beleza e de planos de saúde privados buscava complementar sua renda. Mais trabalho e quase nenhum dinheiro a mais. Hoje, seus filhos são adolescentes. Zilda trabalha 40 horas por semana, faz o curso de Pedagogia, à noite, em uma faculdade particular e ganha trezentos e poucos dólares por mês. Apesar dos seus 25 anos de magistério, não pode pensar em aposentadoria: O que ganho já não dá. Se me aposento, passo a ganhar muito menos!

Zilda, vi a mãe de Roseane lavando a calçada de uma pensão, aqui perto da escola.

Mãe da Samara, colega de turma de Roseane trouxe a notícia. Fale com ela para vir aqui na escola, o mais rápido possível, disse-lhe Zilda. A mãe de Roseane conta o motivo da ausência da filha: separou-se do marido, precisou afastar-se com medo das ameaças de vingança. Agradeceu a professora por ter "segurado" a vaga de sua filha, garantindo que Roseane não mais faltaria às aulas, pois sua situação estava se resolvendo.
Ficar atenta a cada um de seus alunos, conhecendo um pouco sobre o que fazem e como vivem fora do espaço escolar deu a Zilda a dimensão do que seria para Roseane a perda da vaga. Inconformada com essa possibilidade e acreditando na mudança da lógica discriminatória e excludente ainda bastante presente nas escolas, porque hegemônica na sociedade, mostrou fazendo, e não apenas falando, uma prática pedagógica comprometida com a inclusão, com a solidariedade, a amorosidade e o respeito ao outro. Esta situação é a evidência do que nos diz ALVES e GARCIA (1999): o cotidiano escolar tem uma história falada e escrita pelos sujeitos - professores e professoras, alunos e alunas, funcionários e funcionárias sejam os que desempenham funções pedagógicas sejam os que são considerados terem apenas funções subalternas, pais e mães - que estes e estas são o que criam e recriam o cotidiano escolar a cada dia. Uma criação e re-criação nem sempre vista e ouvida pelos responsáveis pelas políticas públicas do nosso país. Registrar e discutir cenas como essas do cotidiano escolar é dar voz a esses sujeitos encarnados - autores/autoras de uma história "miúda" que se faz no dia-a-dia da escola e da sala de aula. Histórias individuais e singulares de sujeitos de razão e emoção, como tão bem chama nossa atenção MATURANA (1999), que vão sendo tecidas e se articulam a outras histórias mais amplas, porque sociais, culturais e históricas. Precisamos aprender a olhar/compreender o cotidiano escolar identificando e destacando, como mais uma vez nos dizem ALVES e GARCIA (1999), fazeres e pensares emancipatórios inspirados por utopias educativas e sociais historicamente e coletivamente construídas por todas e todos que se engajaram/engajam na luta por mudar o mundo.

Terminando com o início da história...

Pátio da escola. Quase 21:00 horas. Após um dia de trabalho, um grupo de vinte e poucas professoras terminavam mais um dos encontros mensais que têm como objeto de reflexão, estudo e discussão a prática alfabetizadora realizada na escola. Converso com Zilda sobre o que Roseane, aluna da classe de alfabetização que acompanho desde fevereiro desse ano, me disse, quando perguntei-lhe se leu ou contou a história na Roda de Leitura da sua sala: Eu li e contei. Eu sei contar história muito bem, sabia? E Zilda, emocionada, me disse: quando vi aquele filme, Nenhum a menos (dirigido por Zhang Yimou) , lembrei muito do que vivi com Roseane, que há dois anos atrás quase perdeu a vaga. Fico feliz e orgulhosa em saber que ela já está lendo e escrevendo. Isso é muito bom!

Carmen Sanches Sampaio
Escola de Educação da Universidade do Rio de Janeiro

Nota de rodapé

(1) O salário mínimo nacional equivale a 83 dólares, aproximadamente

Referências Bibliográficas

ALVES, Nilda & GARCIA, Regina Leite. A invenção da escola a cada dia. IN: A invenção da escola a cada dia. ALVES, N. & GARCIA, R.L. (orgs) R.J, DP&A editora, 2000.

MATURANA, Humberto. Emoções e Linguagem na Educação e na Política. B.H, Editora UFMG, 1999.


  
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Edição:

N.º 94
Ano 9, Setembro 2000

Autoria:

Carmen Sanches Sampaio

Carmen Sanches Sampaio

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