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Aventura do livro (e-livro)

- Vantagens e desvantagens de sua viagem pelo meio eletrônico

"Um Livro
Não há transporte comparável a um livro
Ou embarcações como a página
De tocante poesia,
Para nos levar às plagas mais longínquas
Tal travessia ao mais pobre oferecida
Não tem taxas de viagem
Quão frugal é a carruagem
Que ampara a alma humana!"

(Emily Dickinson)

Por vivermos na era da informatização, em que quase todas as funções e atividades humanas acabam sendo incorporadas ao computador, não é surpresa que o livro também tenha de se adaptar a esse contexto e, desse forma, satisfazer suas decorrentes necessidades. À princípio parece assustadora, e até mesmo absurda, a idéia de que o livro, tal qual o conhecemos, será extinto, principalmente porque ele ainda faz parte da nossa cultura, do nosso cotidiano, sendo, portanto, inimaginável a sua total substituição pelo livro digital, como explica Nicoletta Castagni, em "Gutenberg: a maravilhosa invenção", ao tratar da invenção da imprensa: "As novidades podem assustar, as ligações com as tradições seculares são difíceis de ser rompidas, tanto assim que para muitos expoentes do mundo cultural italiano do final do século XV era uma coisa ignóbil colocar um livro impresso na própria biblioteca".1

Na verdade, somente o suporte mudará, permanecendo o conteúdo. Considerando o livro como um veículo, podemos dizer que ele deixará de viajar por terra e seguirá sua viagem pelo ar. Quando viajamos pelas estradas, aventuramos-nos muito mais; podemos conhecer um pouco das regiões pelas quais passamos, além de termos o privilégio de admirar maravilhosas paisagens. Embora seja mais rápido e até mais seguro, viajar de avião nos priva disso, sobretudo para quem tem medo de altura e mal consegue se aproximar da janela. Talvez isso aconteça com o livro: deixaremos de ter a sensação da sua presença física para termos a imaterialidade da leitura na tela. Por isso, embora não tenhamos certeza e tão cedo não possamos verificar se nossas impressões estão corretas, vamos nos aventurar a discutir algumas das vantagens e desvantagens da passagem do livro impresso para o livro eletrônico.

O primeiro aspecto positivo é a comunicação de textos à distância que, ao anular a distinção entre o lugar do texto e o lugar do leitor, aproxima-se da concretização do antigo sonho de Borges de uma biblioteca universal que disponibiliza todos os livros para qualquer pessoa, em qualquer lugar do planeta.2 Além disso, jamais haverá livros esgotados e os amantes das raridades poderiam adquirir a sua versão eletrônica.

Os problemas de esgotamento dos recursos não-renováveis dos quais depende a fabricação do papel e a limitação da sua durabilidade também estarão resolvidos com o livro eletrônico, que terá vida muito mais longa. É a partir de observações como essas que o professor do Departamento de Linguística do IEL UNICAMP, Luiz Carlos Cagliari, ao contrário da maioria, não atribui ao computador a culpa pela abolição do livro, mas o vê como o único que pode salvá-lo de sua extinção física e cultural.3

A dimensão e o peso de um romance médio de capa mole e o agradável design que facilita o manuseio são as principais vantagens do e-livro apontadas pela editora da "Salon Books", Laura Miller. O aparelho permite carregar arquivos de periódicos on-line e ajustar o brilho de fundo da sua tela, facilitando a leitura em ambientes mais escuros.4 Além disso, proporciona mais conforto e liberdade ao leitor, que não precisa mais carregar tantos volumes debaixo do braço.

O e-livro será de grande benefício para algumas pessoas especificamente, como por exemplo, os alérgicos, que terão no aparelho um grande aliado ao evitar o manuseio de obras muito antigas e empoeiradas. Outro grupo é o daqueles que têm ciúme e cuidados excessivos com os seus livros, que, com o e-book, não terão mais a preocupação de emprestar seus livros com o medo de que não voltem intactos.

A principal desvantagem da leitura digital certamente é a perda da sensação física do livro. O ritual da sua compra, que já vem sendo modificado com a ascensão das livrarias virtuais, será totalmente alterado. O leitor não mais folheará o livro ou observará a capa e a textura antes de adquirí-lo. E as dedicatórias e os autógrafos? Como será o lançamento de um livro eletrônico? Será virtual também? E se quisermos presentear alguém? Mandaremos um e-mail com o livro eletrônico anexo? Podemos prever que, de algum modo, a existência eletrônica do livro diminuirá ainda mais o contato humano. Outra questão alarmante é o desemprego que essa tecnologia provocará, sobretudo no mercado editorial. Em toda a história verificamos as relações de poder e o domínio da tecnologia, leia-se conhecimento, por uma pequena parcela da população os escribas na Idade Média e hoje os programadores de computador impedindo que se realize a tão sonhada "democratização do saber" e ao mesmo tempo que se realize a previsão de McLuhan de que as máquinas fariam do homem comum seu próprio editor5. Além disso, mesmo o conhecimento já disponível não é acessível a todos devido os contrastes sócio-econômicos e culturais. É preciso também sabermos quem controla essa tecnologia e os seus interesses e como será a censura para a literatura no meio digital.

A segurança dos direitos autorais é outro problema que surge com a novidade. Embora algumas editoras virtuais estejam se preocupando com isso, ainda não há garantias de que o recolhimento dos direitos autorais no meio virtual trará menos prejuízos aos autores do que no meio impresso. Além disso, essa tecnologia pode trazer um sério problema para a saúde. A exposição à tela por longas horas traz grandes prejuízos para a visão. Por fim, temos um outro fato negativo: as pessoas deixarão cada vez mais de usar a escrita com o próprio punho e esquecerão o prazer de escrever. No entanto, não podemos afirmar que o livro eletrônico acabará com o prazer de ler.

O que nós não podemos esquecer é que nem sempre o "novo" anula o "antigo", às vezes apenas o modifica, e que as inovações surgem para satisfazer as necessidades dos tempos atuais, que exigem muito mais rapidez e eficiência. Então, caso o e-livro funcione, haverá uma revolução na leitura bem maior do que aquela da invenção de Gutenberg, pois "ela não somente modifica a técnica de reprodução do texto, mas também as estruturas e as formas de suporte que o comunica a seus leitores."6

Assim como os e-mails não acabaram com as cartas, embora estas tenham diminuído bastante, e as pessoas que não escreviam passaram a se corresponder via correio eletrônico, podemos visualizar, com a migração do livro para o computador, uma oportunidade de cultivar o hábito da leitura já que a maioria das pessoas foram se afastando dos livros à medida que passavam mais tempo em frente à tela da TV e do computador. Enfim, muda-se o suporte, as estruturas, mas a escrita permanece, pois como afirma Barbara Giovannini, a palavra escrita tem duração que desafia o tempo.7 Além disso, retomando a idéia inicial de ver o livro como um veículo capaz de proporcionar uma viagem ao leitor, podemos dizer que, mesmo existindo transportes cada vez mais rápidos e confortáveis, sempre haverá aventureiros, carregando uma mochila nas costas e pedindo carona no meio da estrada.

Gláucia Conceição Ventura
Estudante de Comunicação Social
Universidade do Estado da Bahia

Notas de rodapé

  1. Giovanni Giovannini, Evolução da Comunicação: Do sílex ao silício, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1987, p. 105.
  2. Ver Roger Chartier, A ordem dos livros: leitores, autores e bibliotecas na Europa entre os séculos XIV e XVIII, Brasília. Editora UnB, 1994, p. 104.
  3. Luiz Carlos Cagliari, "A escrita no século XXI (ou talvez além disso)", retirado da Internet em 24/08/99
  4. Laura Miller, "Duas semanas com um e-book", Folha de São Paulo, Mais!, 09/04/2000, pp. 10 e 11.
  5. Ver Wilson Dizard, A nova mídia: A comunicação de massa na era da informação, Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1998.
  6. Roger Chartier, A ordem dos livros: leitores, autores e bibliotecas na Europa entre os séculos XIV e XVIII, op. cit. p. 97.
  7. Ver Barbara Giovannini, "Assim o homem inventou a Comunicação". In: Giovanni Giovannini, Evolução da Comunicação: Do sílex ao silício, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1987, p. 55.

Referências Bibliográficas:

CAGLIARI, Luiz Carlos. A escrita no século XXI ( ou talvez além disso). Retirado da Internet em 24/08/99.

CASTAGNI, Nicoltta. Gutenberg: a maravilhosa invenção. In: GIOVANNINI, Giovani.

Evolução na comunicação: do sílex ao silício. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1987. Págs. 85-139

CHARTIER, Roger. Do códex à tela: As tragetórias do escrito. In: A ordem doslivros: leitores, autores e bibliotecas na Europa entre os séculos XIV e XVIII. Brasília, Editora UnB, 1994. Págs. 95-111.

Doria, F. A. e Doria, P. Visão do futuro. In: Comunicação: dos fundamentos à internet. Rio de Janeiro, Revan, 1999. Págs. 299-303.

DIZARD, Wilson. A evolução da comunicação de massa. In: A comunicação de massa na era da irformação. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1998.

GIOVANNINI, Barbara. Assim o homem inventou a comunicação. In: GIOVANNINI,

Giovani. Evolução na comunicação: do sílex ao silício. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1987.

McLuhan, Marshall. A galáxia de Gutenberg. São Paulo, Nacional, 1977. Págs. 353-390.

Os meios de comunicação como extensões do homem. São paulo, Cultrix, 11ª ed., 1999.

O livro morreu! Viva o e-livro! Folha de São Paulo, Mais!, 09/04/2000. Págs. 3-13.

Platão, Fedro. In: Vol. III da col. OS PENSADORES, ed. Abril Cultural, São Paulo, 1973.


  
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Edição:

N.º 94
Ano 9, Setembro 2000

Autoria:

Gláucia Conceição Ventura

Gláucia Conceição Ventura

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