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Crónica de uma professora em trânsito...

Berta era uma mulher mais jovem do que aparentava ser. Era raro vislumbrar-se um sorriso no seu rosto marcado pela amargura e pelo cansaço. Neste ano lectivo tinha conseguido lugar naquela escola, a mais próxima de todas as que percorrera desde há nove anos a esta parte. Licenciara-se em Filosofia pela Faculdade de Letras do Porto para iniciar uma vida de caixeiro-viajante e de colocações precárias que possivelmente só Deus saberia quando iria terminar. Acontecesse o que acontecesse, já nada poderia apagar a experiência terrível que tinha vindo a viver como professora contratada. Estivera nos Açores, em Lagos, Beja e Vinhais, e isto só para referir os lugares mais distantes onde tivera de viver. Delapidara salário atrás de salário numa itinerância que, à medida que o tempo passava, lhe parecia cada vez mais inútil. Hoje, já não tinha lágrimas que chegassem para expressar a solidão que lhe roía a alma e lhe acinzentava a existência. Por isso, quando ouvia falar de crise da profissão docente, ficava sempre com a sensação que a verdadeira crise era a das palavras que se usavam para falar dessa crise. A dor que se lhe atracava no estômago nas noites que antecediam os resultados das colocações ano sim ano sim, a angústia que lhe tolhia os últimos passos antes de bater à porta da sala de um novo Conselho Directivo, o receio que a assaltava quando via aqueles desconhecidos entrar na sala de aula, desconfiados, e algo provocadores, no início de cada novo ano lectivo só tinha equivalência na sensação de desconforto que todos os anos a assaltava quando entrava, mais uma vez, numa sala de professores desconhecida. Chamar a isto crise era, quando muito, uma pobre caricatura de algo que as palavras ainda não sabiam exprimir.

Ensinar Filosofia, também por isso, tornara-se numa tarefa algo penosa, sobretudo quando era incapaz de vislumbrar situações gratificantes que a recompensassem das agruras de uma vida profissional tão amarga como aquela que tinha vindo a viver. Ano após ano, os alunos das turmas que tinha a seu cargo pareciam-lhe demonstrar o mesmo desinteresse de sempre pela escola. A maioria não conseguia escrever um parágrafo sem erros ortográficos ou sem falhas na sintaxe e mesmo os melhores de entre eles não eram tão bons como pareciam e julgavam ser. Se as notas eram melhores isso devia-se mais a um processo de inflação artificial das classificações finais, por força da concorrência com o ensino privado, do que aos méritos pessoais daqueles que as obtinham. Fenómeno que afinal não a admirava por aí além, tendo em conta a vida cada vez mais fácil e sem controlo que os rapazes e as raparigas de hoje levavam. Conhecia alguns que iam de carro para a escola. Fazia até uma pequena ideia do que muitos deles gastavam ao fim de semana em discotecas e bares. Observava indignada a pouca vergonha que grassava pelas escolas e concluía que este não era, certamente, um tempo propício à reflexão e ao uso ponderado das palavras. As dificuldades sentidas pelos alunos em Filosofia não eram, assim, mais do que a expressão de um tempo em que não se cuidava da educação dos jovens, entregues ao hedonismo próprio da sua idade e sem referências inequívocas e claras, por parte dos adultos, que os ajudassem a construir-se como pessoas. E se isso não acontecia, o que lhe restava a ela, como professora, fazer ? Nada ou, pelo menos, muito pouco. Olhassem os pais, primeiro, para a educação que davam aos filhos e deixassem de responsabilizar a escola e os professores pelo seu próprio desleixo como educadores. Estava cansada de carregar a cruz do mundo às costas. A sua era suficientemente pesada. Os meninos que crescessem, namorassem menos, deixassem de perder tempo em passatempos estúpidos e passassem a estudar mais do que aquilo que faziam...

Ficara, por isso, espantada com a Judite quando ela, habitualmente tão reservada, começara a pôr em causa a falta de sentido dos programas que orientavam as aprendizagens dos alunos nas escolas secundárias de hoje. Se fosse a Helena, ainda vá que não vá, esse é um dos seus temas de discussão predilectos. Mas da Judite não seria de esperar um discurso daqueles, ainda por cima completamente despropositado, tendo em conta a razão que estava por detrás da convocação daquele conselho de turma. Não tendo relações de grande intimidade com a colega, sentiu-se, mesmo assim, de alguma forma desiludida com o seu comportamento. Era inconcebível que uma professora com a sua experiência, que tivera até a felicidade de viver e trabalhar num tempo em que a exigência e o rigor eram qualidades que a escola e a sociedade valorizavam, pudesse utilizar a falta de interesse dos programas como argumento para justificar a desmotivação e as atitudes menos próprias dos alunos. Incomodava-a esta atitude. Reencontrava nela, e mais uma vez, a permissividade que caracterizava, em sua opinião, a matriz da relação que os adultos de hoje estabeleciam com os jovens, o que a levava, inevitavelmente, a perguntar para si própria onde é que o mundo iria parar com gente a quem nada é exigido e tudo é desculpado. Era em momentos como este que pensava ter optado pela profissão errada e se confrontava, de forma abrupta, com o absurdo de uma escolha que progressivamente se foi tornando numa obrigação em cujos fundamentos não se reconhecia. O que é que ela estava a fazer naquela escola ? Dizer que se encontrava ali para ensinar Filosofia era o que ela gostava de responder, mas não conseguia. Quando muito contribuía, como outros, para definir o futuro de alguns adolescentes, em geral pouco interessados em si, como pessoa, e naquilo que lhes dizia como professora.

Que sentido fazia, então, continuar a aguentar, ano após ano, aquela sensação de inutilidade que a inquietava ? O salário mensal era a razão mais plausível que encontrava para responder a esta questão. Poderia, talvez, evocar os colegas, mas também isso seria uma mentira. Com alguns deles tinha trocado, quando muito, meia dúzia de palavras de circunstância. O que, diga-se em abono da verdade, não a incomodava grandemente. Com outros tinha estabelecido relações de alguma proximidade que nunca ultrapassaram, contudo, o limiar das conversas à mesa do café sobre assuntos triviais ou a presença conjunta em conselhos de turma ocasionais. Destes, sabia que nunca poderia ser amiga de Helena com a qual discordava em quase tudo, do mesmo modo que não apreciava a frivolidade e o exibicionismo de Ana Luísa. A Judite era o tipo de mulher que, mesmo que ela quisesse, não era dada a grandes intimidades. O Pedro afastava-os a todos com o seu cinismo suave e o humor corrosivo. O Luís, tal como muitos outros, só era visto nos corredores da escola ou quando era convocado para alguma reunião. No que diz respeito aos colegas do seu grupo pouco havia a dizer. Tinham tido uma curta reunião no início do ano e iriam ter uma outra dentro de dias para discutir as matrizes das provas globais. Não sabia se a sua situação de professora em trânsito contribuía para explicar aquele outro lado da sua vida na escola, mas também, tinha que o reconhecer, era coisa que não a preocupava muito.

Ariana Cosme / Rui Trindade
Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação - Universidade do Porto

  
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Edição:

N.º 94
Ano 9, Setembro 2000

Autoria:

Ariana Cosme
Fac. de Psicologia e Ciências da Educação, Univ. de Porto
Rui Trindade
Faculde de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade do Porto
Ariana Cosme
Fac. de Psicologia e Ciências da Educação, Univ. de Porto
Rui Trindade
Faculde de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade do Porto

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