Página  >  Edições  >  N.º 94  >  Aferições

Aferições

Recordar-se-ão os leitores de um textinho vertido nestas páginas da Página, em finais de 1999? A certo passo, rezava assim: "Algo de muito estranho se passava. Na binária rotina aula-teste instalara-se uma espécie de "bug" que perturbava a pacatez habitual. Os pais dos alunos perguntavam se os exames da quarta classe tinham regressado. E já toda a gente procurava no baú das antiguidades os livros de fichas sem a etiqueta indiciadora de "manual de acordo com os novos programas". Mal a aula começava, os putos mergulhavam no "Livro de fichas de Português e Matemática", num treino apenas interrompido para fazer chichi ou comer o lanche. Mas imaginemos que tudo não passou de um pesadelo ou de malévola efabulação..." Decorridos escassos meses e para mal dos nossos inconfessados e irredimíveis pecadilhos, o cenário ficcionado em 1999 foi largamente ultrapassado pelas "novelas da vida real".

Aguardo a pompa e a circunstância do anúncio público dos resultados das provas de avaliação aferida, o que deverá ocorrer (se respeitados os prazos fixados) lá para Outubro, para tecer um eventual comentário aos ditos. Para já, partilharei convosco uma pequena parcela de um vasto acervo de episódios relacionados com a dita "aferição". Não me atreverei a mencionar uma parte significativa do anedotário, tal a incredulidade que me inspiraram os episódios que me foram narrados e apesar de não duvidar da honestidade dos professores confidentes. Portanto, deverá o eventual leitor multiplicar por cem (ou mil?) o pasmo que lhe suscitar a leitura, para uma aproximação mais fiel à realidade.

Passemos aos factos, para que ninguém me acuse de cometer exagero.

A antecâmara das torturas

Na escola X, para que tivessem tempo de "treinar para a aferição", os alunos do 4º ano não puderam ir ao passeio escolar nem puderam participar em actividades desportivas organizadas pela câmara.

Na TV, um miúdo desabafava: "Estivemos só a dar Português e Matemática por causa dos exames. Estou saturado!"

Num jornal diário, um professor confessava que "tinha vindo a preparar o terreno com os seus alunos" E acrescentava:. "Já há algumas semanas deixei de dar matéria e estou a fazer revisões com os estudantes." Num assomo de lucidez, reconhecia que "os alunos estavam assustados". Porém, não recua na gesta gloriosa nem "explica aos alunos que estes testes não contam para a avaliação, porque tem a certeza de que se o fizesse três ou quatro iriam faltar."

Em meados de Maio, com as aferições à porta, nem por intercessão dos pastorinhos de Fátima se debelavam reminiscências das dores de barriga, lágrimas e prostrações características dos primeiros dias de escola. A S. dizia que "desde terça-feira passada estava a estudar, brincava menos e não via televisão nem ouvia música. Já mais para o fim do recolhimento, a mãe fazia um balanço provisório: "Hoje, ela já não estava tão nervosa. Mas na quarta-feira até vomitou."

Em vésperas de ficar concluída esta espécie de preparação para as olimpíadas aferidoras, o F. perdeu o apetite. No dia da prova, tentou tomar um chá. Vomitou-o.

A C. não conseguiu dormir, só pensava nos adjectivos. E entupiu-se-lhe a memória, já "não sabia nada!" A mãe obrigou-a a estudar a gramática toda. "Bloqueou" e as lágrimas caíram-lhe dos olhos cansados de estudo...

A vigilância

O "manual do aplicador" reflectia, entre outros dignificantes pressupostos: que todos os alunos são potencialmente desonestos e que "a ocasião faz o ladrão". O seu conteúdo sugeria que valores como a honestidade não cabem nas escolas; ou que a distância de 1m e 40 cm medida entre alunos com uma visão normal e de 90 cm para portadores de miopia são suficientes para evitar que a solenidade das provas venha a ser manchada com "copianços".

Ao cabo de um quarto de hora de espera para começar a prova, o H. já refilava: "Ó professora, porque é que temos de estar aqui dentro?"

A professora aplicadora disse ter notado que as crianças pediam para ir muitas vezes à casa de banho, "mas não podia ser... não é?"

Mas havia quem "levasse a coisa na desportiva": "Não me preocupa fazer bem, ou mal, ou não fazer nada, porque isto não conta para nada." E, quando faltavam poucos minutos para as nove horas, uma professora mais ansiosa perguntava à J. "se estava preparada". "Preparada para quê? ? retorquiu a cachopa.

Na véspera das provas, uma professora perguntava a um aluno que fora retido no ano anterior se estava tudo a correr bem com ele. Respondeu que nos "testes da Páscoa" (sic) já tinha notas para passar e que as destas provas não serviam para nada.

Imaginemos agora (e com elevadas probabilidades de verosimilhança) um episódio protagonizado pela professora e quatro alunos de uma escolinha serrana.

Três dos alunos foram apanhar ar... Postada no umbral da única porta da única sala de aula, a professora única fazia a chamada da única aluna do quarto ano.

- "Joaninha da Conceição da Silva!"

Perplexa, a miúda ainda olhou em redor. Aventou a hipótese de a senhora se ter "passado". Porém, à cautela, lá fez a vontade à ensandecida mestra: - "Presente!"

E lá entrou para a sala de aula onde, como mandava o manual, a professora verificou se a Joaninha se encontrava à distância regulamentar dos seus (inexistentes) colegas de suplício.

A surpresa

Uma prova de Matemática mais ou menos bem elaborada e em consonância com os programas em vigor surpreendeu muita e boa gente. Meditemos sobre as reacções de alguns professores:

- "Mas isto não pode ser! Os livros não traziam nada disto. Valha-me Deus!"

- "Eles dizem que correu bem, mas eu já vi muita asneira. O problema foi a falta de raciocínio."

- "A primeira parte tinha muitas rasteiras (...) a segunda era melhor, tinha áreas, sólidos, décimas..."

- "A prova estava deslocada. Apelava ao raciocínio lógico. Os manuais e os programas não prevêem isso. Além disso, não estava adequada aos meninos de um TEIP, estava desajustada."

- "Nem eu sabia fazer aquilo! A prova de Matemática era muito esquisita."

O que não será surpresa

Anunciados os resultados, os "responsáveis" farão a moral da história. Se forem bons, isso há-de significar que o sistema está a funcionar na perfeição e que a equipa ministerial tem feito um excelente trabalho. Se forem maus, presumir-se-á que as escolas estarão a incorrer em "facilitismos" e que será necessário dar mais formação aos professores... Nada que já não tenhamos visto.

José Pacheco
Escola da Ponte / Vila das Aves

  
Ficha do Artigo
Imprimir Abrir como PDF

Edição:

N.º 94
Ano 9, Setembro 2000

Autoria:

José Pacheco
Escola da Ponte, Vila das Aves
José Pacheco
Escola da Ponte, Vila das Aves

Partilhar nas redes sociais:

|


Publicidade


Voltar ao Topo