Página  >  Edições  >  N.º 94  >  A cultura da (e na) televisão

A cultura da (e na) televisão

O excerto de conversa que se segue surgiu no âmbito de uma discussão de grupo sobre a programação da televisão portuguesa. Os actores ? a quem aqui dou outros nomes ? são trabalhadores da indústria do calçado. Disponibilizaram-se para conversar sobre o assunto, para mostrar a sua maneira de ver as coisas. E disseram coisas interessantes, que permitem estabelecer muitos paralelos. Nomeadamente, com o que se vai lendo e ouvindo por parte de uma certa burguesia, que insiste na ideia de que a televisão tem que dar cultura, arte e ciência de uma forma supostamente séria.

A propósito dos concursos de televisão que as estações anunciam para Setembro...

António ? 150 mil, não é? É muito dinheiro!
Rita ? Mas a gente vê-se sem nenhum...
Marta ? E ainda dizem que há pobreza em Portugal! Dão dinheiro assim aos montes... Podiam ajudar as pessoas mais necessitadas.
Rita ? É evidente que uma pessoa pobre não dá para ir a esses programas. Eles põem lá coisas que a gente nunca ouviu falar. Vêm com perguntas de anos em que a gente ainda não tinha nascido.
António ? Tem que se estudar.
Rita ? Mesmo assim! Eras capaz de decorar aquilo tudo?
António ? Eu não!
Rita ? Por exemplo, naquele "Quem quer ser milionário?"... Faziam lá perguntas que não tinha pés nem cabeça!
Filipe ? Eu acho que esses programas são para as pessoas mais desenvolvidas, que sabem ou que estudaram. Para doutores, professores ou assim. Penso eu...
Rita ? Isso havia de ser era para os pobres.
Filipe ? Esse programa que vai dar do Carlos Cruz... Eu posso telefonar mas não sei o que é que vou lá fazer. Aquilo é para pessoas com capacidade.
Pergunta ? Esses programas têm muita audiência. O que é que motiva as pessoas a ver esses programas?
António ? É a cultura geral.
Rita ? As perguntas que eles lá fazem. Ficamos a saber coisas que não sabíamos.
António ? Eu gosto de ver e de aprender. No fundo, é um programa cultural.

Já foi escrito e não é novidade. Existe uma certa burguesia que não aceita a ideia de que a televisão não tem que dar o que a maioria quer. São aqueles que contestam a função de entretenimento da televisão e que só querem ver nela a função de educação. Como se este meio de massas tivesse a obrigação de lhes dar, de forma fácil, toda a cultura que têm preguiça de ir buscar a outras fontes de saber. Como se a televisão pudesse resolver todos os problemas de suposta falta de cultura de um povo. Como se o povo estivesse interessado em alta cultura. Como em tudo na vida, os graus de exigência variam de pessoa para pessoa. E para muitos, aquilo que a televisão dá já é muito.

A transformação de um concurso de perguntas num programa cultural é um fenómeno que acontece junto de uma grande parte da população portuguesa, quer essa tal burguesia queira, quer não. As pessoas sentem que aprendem e ficam felizes por isso. Nunca ninguém vai conseguir pôr todas as pessoas que viram a famosa sessão do concurso "Quem quer ser milionário?", que deu 50 mil contos a uma jovem, a ver com o mesmo entusiasmo um programa sobre o Renascimento ou mesmo sobre a vida no fundo do mar. As coisas são assim e não há mal nenhum nisso.

Assim como não vejo mal nenhum em que se veja telenovelas numa base regular. Em Inglaterra, as pessoas de todas as camadas sociais vêem as "soap-operas" e discutem-nas publicamente. Sem se quer lhes passar pela cabeça que o facto de verem estas séries de dramas que tentam reproduzir uma certa realidade, quase sempre da classe média, possa significar qualquer tipo de desvalorização pessoal. Em Portugal, continua a encontrar-se pessoas que dizem mal do "vício" das telenovelas mas que conhecem as personagens...

Concordo com uma pessoa amiga que diz que as telenovelas servem para descansar o cérebro. É quase como uma alienação da vida complicada do dia-a-dia. Durante aquele tempo, vivem-se os dramas dos outros e esquecem-se os próprios problemas. Vê-se o luxo em que vivem certas personagens e entra-se noutro mundo. Parece-me que isto não tem nada de mal. Até relaxa os pensamentos e descontrai as emoções. Claro que quem não quer não vê. É como com os concursos. Mas não se pode exigir que a televisão produza e exiba, maioritariamente, alta cultura. Eu também prefiro que a televisão me proporcione conhecimentos de forma fácil em vez de passar uma hora por dia a ver telenovelas. Mas se tiver que descansar o cérebro com a ajuda de uma telenovela, também o faço. Sem preconceitos. Não exijo é que todos sejam como eu.

Hália Costa Santos
Universidade de Leicester /UK


  
Ficha do Artigo
Imprimir Abrir como PDF

Edição:

N.º 94
Ano 9, Setembro 2000

Autoria:

Hália Costa Santos
Jornalista
Hália Costa Santos
Jornalista

Partilhar nas redes sociais:

|


Publicidade


Voltar ao Topo