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Projecto de Educação Intercultural 1993-97 - Relatórios de Execução e de Avaliação

«Já sabes ou devias saber
Que caminhos fáceis
Só existem na vontade de os ter.»
Jacinto de Magalhães, Entre Mim e o Outro.

(uma experiência sem generalização, porquê?)(1)


MARTINS, Isabel F. et al (1998) Projecto de Educação Intercultural 1993/94-1996/97: Relatório de Execução. Lisboa: ME-Secretariado Coordenador dos Programas de Educação Multicultural, nº 8, 216 p (126 p. de anexos).
ALAIZ, Vitor et al. (1998) Projecto de Educação Intercultural: Relatório de Avaliação Externa. Lisboa: ME-Secretariado Coordenador dos Programas de Educação Multicultural/ Colecção Educação Intercultural, nº 9, 71 p.

Estas duas publicações são do tipo "2 em 1". Ambas se referem a um mesmo projecto cuja dimensão melhor se descortina na leitura cruzada do Relatório de Execução (RE) e do Relatório de Avaliação (RA).


Relatórios de um projecto com memória

O primeiro destes trabalhos (RE) é de uma enorme seriedade e honestidade intelectual. Quem desenvolve um projecto (termo de que se usa e abusa nos dias que correm) tende naturalmente a enfatizar os seus resultados positivos; convém lembrar que todo o projecto parece encarnar uma cultura voluntarista, que se preocupa com o "fazer acontecer" (Boutinet, 1996). O projecto do Entreculturas ? PREDI ? não foge à regra, mas não esconde as limitações e as dificuldades: «não foi possível proceder à observação directa e sistemática do desenvolvimento dos projectos de cada uma das escolas» (p. 35); não cala os entraves e as denúncias, tanto no que respeita ao miserabilismo que se vive em alguns estabelecimentos («situação de fome que muitos alunos enfrentam» p. 68; «tremendas desigualdades de oportunidades que se verificavam na população escolar», p. 34), como às falhas da Administração (salas do pré-escolar equipadas pelas Câmaras mas que não chegaram a funcionar por falta de colocação de pessoal educativo, p. 43; dificuldade em concretizar a fixação de professores durante o projecto, p. 39; «os regulamentos [do FOCO] revelaram-se pouco adequados e nem sempre compatíveis com o tipo de formação pretendida» no que respeita à componente prática com auto-formação, p. 49), como até nas mudanças ao nível do Governo («alterações na equipa governativa e nos dirigentes do ME? geraram alguma instabilidade no contexto do Projecto», p. 82).
Estamos perante um Projecto com uma excelente fundamentação teórica; e se «o rationale subjacente ao PREDI era inicialmente relativamente pouco especificado» (p. 20, RA), ele foi ganhando consistência ao longo dos quatro anos de duração do mesmo. E, talvez por isso, na 2ª fase (últimos 2 anos) tenha havido «maior proximidade à problemática da multiculturalidade? e um claro centramento em experiências de pedagogia intercultural» (p. 71, RE).
Num projecto que «não foi criado, nem dirigido por uma instituição de ensino superior» e onde se mostrou «confiar na capacidade dos práticos» (p. 19, RA) para o desenvolvimento de um projecto, com dupla vertente, de acção e de investigação, é inegável a relevância da orientação e supervisão científica ? a cargo de Isabel Guerra/ ISCTE ? «pela profundidade de análise que imprimiu à reflexão? pelo distanciamento? que permitiu uma orientação mais crítica e exigente» (p. 85, RE).


Ilacções do Projecto de Educação Intercultural

As principais constatações do PREDI são, em muitos casos, similares às de outros projectos anteriores, como o da Quinta da Princesa em que estivemos envolvidos cerca de sete anos (Souta, 1997).
Assim, o PREDI: (i) foi mais de formação de professores e de formadores; (ii) teve maior impacto e maiores ganhos nos professores e nas estruturas do ME do que nos alunos, «destinatários principais» (p. 25, RE); (iii) centrou-se particularmente na construção de projectos educativos e daí se poder questionar o facto do PREDI ser um projecto ou 1 + 49 projectos, tantos quantas as escolas envolvidas; (iv) denotou dificuldades em incluir todos os agentes educativos («não se ocuparam dos auxiliares de acção educativa [«pontualmente nalgumas escolas», p. 58 RE], nem envolveram todos os professores da escola», p. 43, RA); (v) ao ser «concebido de forma ambiciosa, em termos de linhas de acção» (p. 82, RE) e ao optar por uma «tão exigente metodologia» ? a metodologia de projecto (p. 66, RA), não seria de esperar, que num período tão curto de tempo, se verificassem as tão desejadas mudanças de atitudes (processo sempre longo e demorado); (vi) reclamando-se da investigação-acção, acabou por fazer mais animação sócio-cultural do que investigação (p.e., as pesquisas no âmbito da investigação fundamental não se concretizaram, p. 22, RE); (vii) revelou que a produção de materiais de interculturalidade «foi das que mais motivou a adesão das equipas? e a que mais facilmente perdurará nas escolas» (p. 63, RE) mas, por outro lado, evidenciou a «dificuldade dos próprios professores em integrar elementos de multiculturalidade nas suas planificações didácticas» (p. 60, RA), acabando por provar que estas problemáticas, se não estão explicitamente enunciadas no currículo oficial, acabam por ser remetidas para as margens do currículo, isto é, para os clubes das actividades de complemento curricular, área-escola, ou acções pontuais envolvendo grupos reduzidos de professores e de turmas.

Duas notas ainda sobre omissões assumidas, estranhamente, pela equipa de avaliação: «houve alguma resistência em produzir dois tipos de informação (que haviam sido solicitadas pelo Secretariado) ? análise custo-benefício? porque essa análise não nos parecia pertinente; e resultados académicos nas escolas» (p. 34, RA).
a) Sobre os custos financeiros a única informação disponível é a que consta do RE (pp. 60-61): cerca de 300 mil contos foram as «verbas atribuídas às escolas», isto é, 6.074.248$ por escola, sendo o custo/aluno/ano: 3.340$ (na 1ª fase, que envolveu 15 000 alunos) e 4.290$ (na 2ª fase, com 23 000 alunos). Baratíssimo! Ficamos, no entanto, sem saber qual o custo total, real, do projecto, o que implicava conhecer, entre outras, as despesas com a formação, a produção de materiais e as deslocações.
b) Quanto aos resultados académicos, este passar ao lado denota uma preocupante atitude, a de se continuar a subestimar esta dimensão, que é, para mais, a que define a essência da actividade de ensino. E assim, fica-se apenas a saber que «os alunos das minorias étnicas não registaram acréscimos de valor espectacular» (p. 67, RA): no 1º ciclo «melhorou claramente a situação dos não-lusos» e no 2º ciclo «produziu efeito positivo de reduzida dimensão». Quanto aos resultados não académicos, «sendo de impossível ou, no mínimo, difícil mensuração, não permitem afirmações quantificadas», e por isso continuamos nas afirmações vagas dos «avanços significativos» nas relações interpessoais, interétnicas, e na auto-estima (p. 67, RA).


Questão de fundo: é ou não de generalizar esta experiência?

Quais os impactos institucionais destes documentos? O ME, em 1995, tinha manifestado, em diploma legal, a intenção de «ser estudado o seu gradual alargamento a todo o sistema educativo». E nessa linha apontam aquelas que, para nós, são as principais orientações a retirar do PREDI: (i) «A multiculturalidade é uma problemática emergente na sociedade e na escola portuguesa que diz respeito a todas as escolas e a todos os alunos. Limitar a reflexão sobre a intervenção a desenvolver às escolas com maior peso de alunos pobres e/ou étnica e culturalmente diferenciados, seria um erro estratégico grave, já que retiraria a possibilidade de preparar todos os alunos para viverem num mundo plural, onde a mobilidade é uma constante.» (p. 87, RE), e (ii) a ideia de que «as alterações profundas? para um prática pedagógica intercultural não surgirão de forma espontânea. Essa mudança não poderá ser deixada ao acaso ou à opção de cada escola, antes deve ser equacionada como um objectivo estratégio» (p. 88, RE) (2). Tome-se como termo de comparação o caso da informática e, em especial, o da introdução da internet nas escolas. Foi um movimento "de fora para dentro".
No entanto neste aspecto, das Conclusões e Recomendações, sentimos alguma frustração: elas estão mais centradas no "projecto em si" (o pernicioso olhar para o umbigo) do que em dar a resposta fundamental por que todos esperávamos ? é ou não a educação multicultural uma área para generalizar? Não foram adiantadas as implicações globais para o sistema, pelo menos, as de curto e médio prazo, decorrentes desta experiência educativa. Foi-se pouco audaz, tanto a equipa do Projecto como a equipa de Avaliação (3). Esta última afirma como 1ª recomendação: «é necessário promover novos projectos no domínio da educação intercultural que aproveitem as aquisições deste, de modo a não defraudar as expectativas positivas induzidas no sistema educativo e optimizar o capital de experiência e de conhecimento adquiridos» (p. 67, RA). E não saímos do círculo vicioso da pescadinha-de-rabo-na-boca: de projecto em projecto até? onde?
Em suma, faltou ousadia nas propostas para o futuro. Parece ter havido o cuidado em não "entalar" os responsáveis políticos do Ministério da Educação. Assim, não se pode acusar o ME de não ter seguido as conclusões do Projecto, pois os seus autores não quiseram, ou não puderam, ser suficientemente objectivos e explícitos. Foi pena! A "avestruz" teima assim em manter a cabeça dentro do buraco. Quando no país real, a heterogeneidade étnico-cultural das escolas se acentua, a resistência ao estudo e o baixo aproveitamento escolar por parte dessas populações se reconhece, a dificuldade dos professores em motivar e ensinar esses alunos se generaliza, e a conflitualidade social provocada pela juventude (auto)excluída do sistema se torna bem visível e preocupante. (4)

Luís Souta
ESE de Setúbal


Notas e Referências

(1) Este texto recupera, no essencial, a comunicação apresentada na F.C. Gulbenkian, em 9/12/98, a convite do Secretariado Entreculturas, no lançamento público destes livros (e de mais outros) editados por esta organização do ME. Por razões a que somos alheios, a vinda a público desta recensão tem sido inexplicavelmente adiada.

(2) Estranha-se que estas conclusões/recomendações não tenham aparecido na folha Diálogo Entreculturas, nº 26, Abril/Maio 99 inteiramente dedicada ao projecto, onde se transcreveram diversos extractos destas duas publicações aqui analisadas.

(3) A avaliação externa foi, de facto, externa em relação ao Projecto PREDI, mas não muito em relação à entidade responsáve. Ou seja, fez-se uma avaliação na óptica do promotor. O ME avalia o ME!

(4) Os desacatos nos comboios da linha de Cascais e os assaltos às gasolineiras (Junho e Julho de 2000) têm sido abordados apenas como casos de polícia; todavia, a resolução desses problemas está a montante? e as escolas, com educação multicultural, podiam dar um valioso contributo.

BOUTINET, Jean-Pierre (1990) Antropologia do Projecto. Lisboa: Instituto Piaget/ col. Epistemologia e Sociedade, nº 53, 1996.
SOUTA, Luís (1997) "Projecto Várias Culturas, Uma Escola" in Multiculturalidade & Educação. Porto: Profedições, cap. XVIII, pp. 137-153.


  
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Edição:

N.º 94
Ano 9, Setembro 2000

Autoria:

Luís Souta
Instituto Politécnico de Setúbal
Luís Souta
Instituto Politécnico de Setúbal

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