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Nos Oitenta Anos de Nascimento de Raul de Carvalho

Nascido no Alvito-Alentejo em 1920, Raul de Carvalho completaria oitenta anos se fosse vivo e cinquenta anos de poesia: uma poesia através da qual sempre pôde protestar, reclamar, indignar-se contra a vida e contra si mesmo, porque os fados da sorte poucas vezes andaram a seu lado. Foi uma vida feita de queixas e doenças, empregos mal pagos e muitos protestos contra tudo e a favor de todos nós. Por isso, no essencial da sua poética, o autor de Realidade Branca deixou inscritos os sinais mais visíveis de um doloroso percurso pessoal, nos altos e baixos de muitos silêncios e rancores, humilhações e desabafos, ralhos e medos, receios e frustrações. E é por aí que se confirma, como já observou Eduardo Lourenço, que "a outra metade de inesgotável imagem de Álvaro de Campos, recriação e aprofundamento de uma similar sensibilidade, revive na obra de Raul de Carvalho, um dos mais autênticos e puros poetas do seu e nosso tempo".
Ora, na passagem desta dupla efeméride (4.Setembro.1920, data de nascimento e 3.Setembro.1984, data da sua morte ocorrida no Porto, onde estava de passagem), pela noite silenciosa de muitas noites, o poeta (ainda) entra pela casa dentro e fica à mesa connosco: na sagrada aliança da vida e da morte, a amizade forja-se de bem pouco: dois dedos de conversa, um sentido desabafo por isto ou por aquilo, a leitura do poema acabado de escrever, o falar por falar em projectos que mais tarde ganharam corpo. E assim se pôde consolidar o casulo de uma "poética" pressentida nas sombras e vozes que lhe fizeram companhia. Entre o silêncio e a solidão, entre a ausência e a presença da terra que o viu nascer, se confirma o "corpus" de uma poesia que desde As Sombras e as Vozes (1949), como muralha de sacrifício e lamento de quem muito se queixou de si e dos outros, se determinou nas razões próximas de uma desesperança assumida e entendida no limiar do sofrimento e da resignação. Assim, pode dizer-se que a poesia de Raul de Carvalho, no todo ou nas partes que desse todo se divisam, é o grito permanente de que as palavras nem sempre abundam como as cerejas, escasso e repetitivo é o seu verbo, mas só pelo crepitar desse canto o "espírito" se faz carne e sangue, na ilusão sentida de se fazer entender:"O principal valor da prosa é para mim o de aliviar-me do desconfortante e velhaco pensamento de que o que escrevo é gratuito. Medos antigos. Se há ilusão, continuo iludido" (Uma Estética da Banalidade, 1972).
De facto, existe na poesia de Raul de Carvalho uma mitologia do sangue definida pelo modo como configurou esse trajecto e ofício de poeta em mais de quarenta anos: uma mitologia feita de mitos maiores e menores, enformada na consciência de quem tinha da vida e do mundo razões bem penosas e amargas. Os fados da sorte poucas vezes vieram ao seu encontro, os deuses não o protegeram, o poeta defendeu-se como pôde (e sempre mal) nessa luta tão desigual. Em consciência consigo e por saber desde cedo e de muito longe, que o vinho da vida só de fel e vinagre lhe poderia servir. Por isso, a vida se fez e refez na solidão e silêncio da casa: antes povoada, não se dera ainda a partida última do Pai nem da Mãe, depois o esquecimento dentro de quatro paredes, no abandono de si, na tristeza desse abandono vigiado e tão atormentado. A realidade física da doença, a velhice que chegou antes de tempo, a reforma antecipada e bem parca: e de todos esses males juntos construiu a imagem desse silêncio habitado, na teimosia de estar vivo, na recordação de quem partiu mais cedo e deixou pela casa esse vazio difícil de suportar. Enfim, a vida presa por fios, no arrepio das horas de solisão e no desencanto de quem soube esperar no seu canto e aí encontrar o casulo mais habitável.
As vozes e as sombras desse círculo nunca se calaram nos sinais evidentes da infância alentejana nunca esquecida, nos passos e paragens sofridas por dentro, no temor indisfarçável de viver em Lisboa "com medo da morte". E assim o círculo se desdobrou em ligações que não perduravam, na imagem suportada ou imaginada de quem entrava na casa, permanecia por pouco tempo, partia depois sem um gesto de despedida. Na desilusão sofrida e sentida de tudo ser assim, visão de coisas e de pessoas, olhar duplo e vago sobre um tampo de mesa vazio e desocupado, por entre papéis rabiscados em momentos de desespero e de solidão, a escrita traçada nas veredas de um destino, repetimos, que sempre foi difícl de suportar. E os anos assim correram até trazerem consigo, na surpresa da doença que afinal não foi cardíaca, esses instantes derradeiros de sofrimento e dor, ainda com o claro receio de morrer sem ninguém a seu lado. E por aí se jogaram algumas das suas "equivalências pessoais":

Clausura igual a sepultura
Multidão igual a confusão.
Espírito
livre? Foi o que nunca tive".

Pressentida no imediatismo das suas intenções, por vezes dominada pelo impulso de um certo automatismo excessivo, herdado de um surrealismo
de que desejou aproximar-se, a poesia de Raul de Carvlaho estrutura-se numa teia de mil fios e sugestões de coisas, lugares e pessoas: quem entra e faz parte desse mundo? quem lhe habita a casa? quais os lugares por onde se estendem esses sinais marcados pela dor, sofrimento, distância, despedida? De livro a livro, de poema e poema, esse universo radicaliza-se em discursos nem sempre muito claros por se sobreporem as sugestões que se escondem ou ocultam de um dizer mais sentido do que claramente dito, mais vivido do que experimentado, mais assumido do que afirmado. E só os anos e o abandono da casa, na doença e na velhice, na reforma que chegou antes de tempo e no medo da solidão dentro de quatro paredes, consolidaram essa ideia-força essencial no entendimento e leitura de uma poesia feita e refeita na mitologia do sangue com que o poeta a soube determinar e e estruturar ao longo dos anos e dos muitos livros publicados.
Por isso, na passagem dos 80 anos do seu nascimento e dezasseis anos sobre a sua morte, impõe-se de todo conhecer e transmitir o profundo sentido humano e lírico da poesia de Raul de Carvalho, que é sem dúvida uma das vozes mais expressivas depois de Pessoa, e está hoje reunida no volume "Obra Poética", publicado pela Ed. Caminho-Lisboa, 1993.

Serafim Ferreira
critico literário

 

DOIS POEMAS INÉDITOS
de Raul de Carvalho


Parábola do Parapluie

A Rui Mário Gonçalves.

Não devemos submeter-nos à chuva inutilmente.
É um erro sair de casa com as algibeiras vazias.
Quem paga as favas (diz a mulher-a-dias)
é a água corrente, que é mais cara.
Um príncipe com orelhas burro (que hoje vale muito dinheiro!)
não se deve enfeitar de noite, só de dia.
As fraldas, os fundilhos, as algibeiras rotas, habilmente cerzidas
todas as nódoas e cansaços irremediáveis
(outras não - que para isso lá está o chapéu-de-chuva,
o misericordioso chapéu-de-chuva, o objecto miraculoso
enfim que nos livra da muita coisa aborrecida e que muita gente
- por manifesta falta de habilidade - não sabe manejar.

Pois bem. Eu penso que um chapéu-de-chuva, hoje em dia,
é coisa indispensável no arsenal do homem moderno.

Defende-nos de tudo. Só nos não defende
- pelo menos por enquanto -
de ter uma febre dos demónios que nos leve pró diabo.

Pró diabo que os carregue.


Lisboa, 7-VII.71 (números aziagos).

Hierarquia

Tantos chefes...
Um disto, outro daquilo...
Esta correspondência é maravilhosa!
Lembra um caudal de vício.
Com seus tiques, suas pregas românticas, seus artifícios milenários...
Tratam-se todos por tu e excelentíssimo senhor; bebem do fino!
Penso que têm vocação de monges
em fato-de-banho.
Deliciosas, as amantes...
Cómodas, as almofadas...
Firmes, as cadeiras. Firmes no poder.
Simplesmente...
- Já ouviram falar do Burro de Oiro?
- Ou daquela história do deus com pés de barro?


Creio que Bertolt Brecht tinha inteira razão.
Quando atirava
- com meia dúzia de palavras -
estes dejectos para a sarjeta.

9.2.72
(Do livro inédito A Poesia é uma Arma).


  
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Edição:

N.º 94
Ano 9, Setembro 2000

Autoria:

Redacção

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