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Sendim Ganhou Aposta Celta

Nem o tortuoso percurso que liga Macedo de Cavaleiros a Mogadouro, nem o vento frio que, estranhamente, se fez sentir no planalto mirandês durante o primeiro fim-de-semana de Agosto foram suficientes para impedir o sucesso do 1º Festival Intercéltico de Sendim ? de acordo com a organização, foram vendidos 2.500 bilhetes para a primeira noite e cerca de 3.500 para a segunda, fazendo com que, alegadamente, o certame se tenha pago quase exclusivamente com a receita de bilheteira; se a isto juntarmos a forte implicação da população local na montagem da iniciativa, o efectivo espírito de festa que ali se viveu, a elevada qualidade dos concertos e a complementaridade da programação, só pode mesmo falar-se de sucesso.
Paralelamente aos espectáculos, a programação do festival incluiu uma visita guiada por António Rodrigues Mourinho aos sítios arqueológicos mais relevantes das Terras de Miranda (muito participada), duas conferências ? "A língua mirandesa: uma língua viva" (Amadeu Ferreira) e "Figuras rituais do solstício de Inverno: tradição e continuidade" (A. R. Mourinho) ?, uma workshop sobre a tradicional dança dos paulitos (orientada por Belmiro Carção), e três iniciativas editoriais: dois CD ("José Maria Fernandes: Gaiteiro de Urrós" e "Sacho, Gaçpóia I Rock?n?roll", dos Picä Tumilho) e um livro ("Memórias do Pardo e Linho", de Emílio Martins).
Para além disso, estiveram patentes uma mostra-venda de instrumentos tradicionais portugueses e uma feira do disco onde se podiam encontrar ?selos? muito pouco disponíveis nas grandes superfícies, do português Sons da Terra aos ?hermanos? Elkalernean, Fono Astur, Música Sin Fin, Nube Negra e Resistencia, entre outros ? incompreensivelmente, numa das tendas era possível encontrar uma ou outra ?pimbalhada?...

Os concertos

Como não poderia deixar de ser, a função teve início com os sons da terra. Com um espectáculo especialmente preparado para a ocasião, os Galandum Galundaina ? mais do que um grupo musical baseado em gaitas, caixas e bombos, estão constituídos em associação cultural ? empenharam-se na demonstração das potencialidades recreativas do cancioneiro tradicional mirandês, para isso chamando ao palco um grupo de danças e cantares e uma formação de pauliteiros. Estiveram bem, e atingiram o público em cheio com uma dupla participação-surpresa: se o sanfonieiro Tentúgal (patrono de sucessivas formações do Vai de Roda) já não tem por onde esconder o seu enorme talento, o registo lírico de Cláudia fez acontecer um repetido momento de magia ? com as gaitas, a sanfona e a voz da Cláudia, não espantou que os anjos bailassem no céu de Sendim...
De surpresa em surpresa, seguiram-se os Camerata Meiga, talvez os mais prejudicados pela forte ventania que se abateu sobre o recinto aberto do festival: oriundos da Galiza, os Camerata são, como a própria designação indicia, uma formação mais próxima da música de câmara (comprova-o uma base instrumental que assenta num trio de cordas) do que da folk galega tal-qual é normalmente reconhecida; por outro lado, apareceram ?desfalcados? da voz que os acompanha em disco ? a ?nossa? Amélia Muge. Ainda assim, o público não deixou de aderir ao percurso traçado no CD "Habelas Hailas" [Resistencia, 1999], que assume uma estética contemporânea referenciada em conceitos minimalistas, étnicos e galegos. Em Sendim, os Camerata Meiga (ex-Xeque Mate) soaram como uma espécie de intersecção entre Madredeus e Penguin Café Orchestra.
A segunda noite abriu com a entrada no terreiro de uma fanfarra galega trajada a rigor e composta por cerca de meia centena de figuras, entre instrumentistas (sobretudo gaitas, mas também caixas e bombos) e majoretes. Durante largos minutos, os ritmos tradicionais da Galiza serviram de aperitivo para o que iria seguir-se.
Primeiro, subiu ao palco a Asturiana Mining Company (AMC), a cuja actuação não tivemos oportunidade de assistir integralmente. Em todo o caso, importa dizer que se trata de uma formação recente, baptizada com o nome de uma companhia mineira fundada no final do século XIX, por iniciativa britânica. Liderada pelo guitarrista norte-americano Michael Lee Wolf, a AMC experimenta um princípio ?enunciado? por Paco de Lucia: não misturar músicas, mas unir músicos. E que instrumentistas!... Do gaiteiro Alberto Varillas à acordeonista Marga Lorences, passando pelo pianista Xaime González e pelo percussionista Manuel Cordero, cada um desenvolve uma faceta independente; ou, como refere Wolf, cada um dá o que sabe, ensinando-o aos restantes. O resultado é um mosaico de excelente folk, aberta a linguagens tão diversas como o rock, o blues, a jota, o reel ou alguns ritmos mexicanos.
A fechar a noite, os Oysterband fizeram jus à condição de cabeças-de-cartaz do festival. Apresentado como uma banda que "combina a energia céltica dos Pogues, a agudeza de espírito de Billy Bragg e o carisma festivo dos Dexys Midnight Runners com a elegância musical dos Waterboys", o quinteto inglês fez da sua presença em palco uma verdadeira festa, contagiando o numeroso público presente, que não regateou aplausos e pedidos de "só mais uma". Senhores de enorme prestígio junto da comunidade folk-rock, os Oysterband já vêm de longe, consolidando passo-a-passo uma carreira que já leva 20 anos e 15 gravações. A última ? "Here I Stand" (Running Man, 1999) ? serviu de base ao concerto de Sendim, que, se não pareceu mostrar nada de novo relativamente a registos anteriores, confirmou aquilo que já se adivinhava: uma formação absolutamente competente, que progride na vanguarda da folk-rock, revelando um grande profissionalismo e muita simpatia.

A Taberna dos Celtas

 

Nas imediações da EB2,3 de Sendim, onde decorreu o festival, a organização instituiu o salão de festas da vila em "Taberna dos Celtas", ou seja, em local de aprazível convívio e simpático apoio aos apaixonados pela cultura celta, seja lá isso o que for.
Primeiro servindo almoços e jantares, depois acolhendo concertos complementares e, finalmente, constituindo o último consolo para os mais sedentos, os mais esfomeados e, claro está, os mais festivos ? bebidas, petiscos e muita música e cantoria prolongaram as noites às primeiras horas do sol alto.
Quanto aos comes-e-bebes, nada a dizer. Cumpriu a função, tal como quanto à convivialidade que suscitou. Relativamente aos concertos, a programação dividia-se em duas noites duplas: uma mirandesa (Picä Tumilho e SangriSulta) e uma portuense (Mandrágora e Comvinha Tradicional). Não foi essa, certamente, a intenção dos programadores, mas o certo é que as comparações foram inevitáveis, sendo claramente perceptível que cada noite teve o seu vencedor: Picä Tumilho e Comvinha Tradicional.
Quanto aos mirandeses ? que, como atrás se disse, lançaram o seu primeiro CD ?, parecem constituir um caso sério de popularidade na região. Autêntica banda de culto local, arrastaram consigo uma verdadeira multidão de fãs (dos 8 aos 80), que cantaram em coro alguns dos que provavelmente constituem os temas primordiais do que eles dizem ser o rock mirandês, ou, num sentido mais lato, do rock agrícola. Com muita energia, muito humor, uma forte presença em palco (sobretudo do vocalista, Emílio Martins), os Picä Tumilho foram demolidores, não deixando grande margem de manobra aos conterrâneos SangriSulta ? um projecto que se percebe ainda estar à procura de uma linguagem distintiva, mas que, por agora, revela algumas fragilidades pimbalhonas; ressalve-se, no entanto, a capacidade técnica evidenciada pelo excelente guitarrista que demonstrou ser Filipe Teixeira (também baterista dos PT).
A abrir a ?noite portuense?, talvez os Mandrágora tenham saído prejudicados pela proximidade temporal da lição dada ao ar livre pelos Oysterband. Fosse por isso, fosse porque ainda não está suficientemente consolidado o seu ambicioso projecto ? "transformar a música tradicional em algo de novo, combinando influências que vão da Escandinávia ao Mediterrâneo" ?, o certo é que o quarteto não conseguiu cativar o público presente (menos numeroso do que na ?noite mirandesa?), progressivamente alheado do que se passava no palco, por certo sem se aperceber das reclamadas influências: Herdningarna, Varttina ou La Musgaña.
Mais expeditos se revelaram os Comvinha Tradicional, ainda que, de início, algo parecesse não estar a correr pelos ajustes ? ao que parece, o som de palco não se revelava colaborante, obrigando os elementos do grupo a constantes trocas de olhares e, consequentemente, a alhear-se da plateia. Mas os concertos têm destas coisas, e se os músicos não puxavam pela assistência, as três vozes femininas lá foram levando a água (público) ao moinho (palco). Aos poucos, o espectáculo lá foi ganhando sentido (comunhão), amassando-se numa reinterpretação claramente urbana das melodias e polifonias que povoam o imaginário tradicional português ? discretamente, os Comvinha aproximaram aquilo que os Mandrágora afastaram.

O futuro

Constatado o sucesso do primeiro festival, os promotores e organizadores ? Câmara Municipal de Miranda do Douro, Junta de Freguesia de Sendim, associação Mirai Qu?Alforjas e editora Sons da Terra ?, garantem que os próximo dois estão na forja, e muito provavelmente com reforço de meios já no próximo ano.
Um facto que satisfaz Mário Correia (Sons da Terra), declaradamente farto de concertos em salas fechadas, com cadeiras a estorvar. "As pessoas precisam de dançar, de conversar, de beber uns copos, de viver a natureza. E este é o espírito deste festival".  
Ganha a aposta a nível da população local ? da sede concelhia não se poderá dizer o mesmo, uma vez que, segundo fonte da organização, "de lá só vieram cerca de cinco pessoas"... ? apenas se torna necessário fidelizar o público. E, já agora, esperar que os ventos amainem.

António Baldaia


  
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Edição:

N.º 94
Ano 9, Setembro 2000

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