Página  >  Edições  >  N.º 94  >  A Escola Contra a Violência na Família

A Escola Contra a Violência na Família

(Com excertos de uma campanha desenvolvida em 14 escolas do Norte do país)

Em 1997, um estudo publicado pela Comissão para a Igualdade e para os Direitos das Mulheres (CIDM) - realizado por Nelson Lourenço, Manuel Lisboa e Elza Pais, da Universidade Nova de Lisboa -, baseado no inquérito "Violência contra as Mulheres", efectuado dois anos antes, tece uma autêntica "radiografia" da violência exercida contra as mulheres em Portugal.
Aquela que foi a primeira investigação exaustiva sobre o tema no nosso país, permitiu quantificar uma realidade "dificilmente captada pelas estatísticas" e que muitas vezes se "esvai por entre as redes de malha larga da lei", como referem os autores. Além disso, como em todos os estudos que assentam sobre vitimação, "os dados recolhidos referem-se sempre à violência declarada e não à violência real", dizem ainda os autores, o que permite supôr que a verdadeira dimensão do problema não é ainda totalmente conhecida.
Embora a violência contra as mulheres não se restrinja exclusivamente ao espaço doméstico, o facto é que alguns investigadores referem a casa como sendo um dos lugares mais "perigosos" das sociedades modernas. Vários estudos têm revelado que a violência contra a mulher se exerce sobretudo aqui, onde ocorrem cerca de 43% dos casos.
No Reino Unido, por exemplo, um em cada quatro assassinatos é cometido por um membro da família contra outro. Na Nicarágua, um estudo recente mostrou que 63% dos filhos criados em famílias em que a mulher é submetida a violência, repetem pelo menos um ano lectivo e, em média, abandonam a escola aos nove anos de idade, em comparação com a idade de 12 anos para os filhos de mulheres que não são vítimas de abusos.
Em Portugal, os números do Serviço de Informação às Vítimas de Violência Doméstica (SIVVD), que dispõe de uma linha telefónica gratuita a funcionar desde o final de 1998, ilustram, até certo ponto, a realidade nacional: desde o início deste ano, já recebeu mais de 1200 chamadas directamente relacionadas com actos de violência. Por seu lado, a Associação Portuguesa de Apoio à Vítima, outra das organizações a trabalhar neste domínio, prestou apoio a mais de 4 mil casos.
A partir dos dados obtidos pelo SIVVD, coordenado pela Comissão para a Igualdade e para os Direitos da Mulher (CIDM), foi possível traçar o perfil médio das vítimas: empregadas domésticas, trabalhadoras não qualificadas, operárias, artífices ou desempregadas, na faixa etária dos 35/44 anos. Os agressores, são, também eles, trabalhadores não qualificados, operários da construção civil, trabalhadores da metalurgia e da metalomecânica, associados, num elevado número de situações, a um excessivo consumo de álcool. A zona litoral do país, em especial as áreas urbanas de Lisboa e do Porto, são as mais problemáticas.
Apesar deste serviço de apoio da CIDM ser mais procurado por mulheres de estratos sócio-económicos baixos ou médios, tal não significa que sejam elas as únicas a sofrer maus tratos físicos ou psicológicos. "O problema também se verifica nas classes mais altas, mas nesses casos é normal as mulheres recorrerem a ajuda psicológica ou jurídica particular", considera Ana Maria Braga da Cruz, presidente da CIDM.
Preocupante é também o facto de uma elevada percentagem das vítimas sofrer maus tratos contínuos, não lhes tentando pôr termo até à altura em que os denuncia. Falta de recursos económicos, ausência de apoio familiar, vergonha, esperança numa mudança de comportamento por parte do agressor ou receio de perder os filhos em caso de litígio, são as alegações mais frequentes. Comuns são também as situações em que, depois de ter apresentado queixa e se ter afastado de casa, a mulher acaba por voltar a casa e regressar ao ciclo de violência.

Um problema "cultural"

Um problema com uma "forte raiz cultural cultural", o qual "não deve ser dissociado das profundas transformações a nível dos processos sociais e dos modelos familiares, nomeadamente no que se refere ao papel social e familiar e às desigualdades entre os sexos", concluem os autores do estudo Violência contra as Mulheres. Ana Maria Braga da Cruz, por seu lado, fala também do "estereótipo" da violência física masculina, que "habitualmente se sobrepôe à falta de argumentos", numa relação de dominação e de força. Um conjunto de factores aos quais se junta o peso da tradição, responsável, ainda de acordo com a mesma pesquisa, "pela reprodução de atitudes e de situações de desigualdade entre os sexos".
Uma outra investigação, esta sobre mulheres maltratadas na zona do Porto - realizado em 1995, por Luísa Silva -, demonstra existir um "carácter fatalista na reacção submissa das mulheres agredidas", e Stark e McEvoy mostram que, além dos homens, também muitas mulheres (um homem em cada quatro e uma mulher em cada seis) admitem que "em determinadas circunstâncias e dentro de um certo limite" os homens lhes podiam bater.
Um outro estudo, efectuado em 1996 por Elza Pais, vem ao encontro destas conclusões, demonstrando que "os valores socioculturais - ancorados numa identidade do género feminino, que veicula um casamento para a vida - impedem, em certos contextos sociais, as mulheres agredidas de denunciar o agressor, preferindo o sofrimento silenciado a uma ruptura da conjungalidade e perda de uma posição social que as colocaria em situação de vulnerabilidade e fragilidade social".
Actualmente, e apesar de todas as condicionantes culturais e sociais que possam continuar a existir, a mulher portuguesa está mais consciente dos seus direitos e reivindica-os, como se verifica pelo crescente número de queixas e de processos levantados contra os agressores. Um crescimento que não traduz necessariamente um aumento da violência na sociedade, sendo antes fruto de uma "maior informação e sensibilização", refere Ana Maria Braga da Cruz, levando a que sejam familiares e amigos das vítimas, por exemplo, quem muitas vezes telefona a denunciar as situações.
Mas as melhorias na legislação, nomeadamente no que se refere à penalização das ofensas corporais, ainda não foi assimilada no quotidiano. Muitas vezes são as próprias autoridades policiais a dissuadir a mulher da prossecução da denúncia, o que atesta um certo "domínio privado" da violência conjugal.
Não é só em Portugal que este problema assume proporções graves. Na União Europeia, uma em cada cinco mulheres foi, pelo menos uma vez na vida, vítima de violência praticada pelo companheiro. A abordagem ao problema, porém, é feita de uma forma mais "pedagógica". Em alguns países nórdicos, por exemplo, os serviços sociais prestam assistência aos próprios agressores, numa perspectiva de reinserção social.
A prevenção é a melhor forma de evitar que a violência se alastre pelas gerações seguintes. É neste sentido que a escola tem um papel primário, e fundamental, na consciencialização para os direitos da mulher e para a desmistificação das relações humanas. Nas escolas portuguesas, porém, o tema não é abordado sistematicamente. Quanto muito, aproveita-se o Dia Internacional da Mulher para realizar iniciativas pontuais, que dificilmente despertam a atenção dos alunos por não os mobilizarem directamente.
Quando trabalhava directamente na área de atendimento jurídico, Ana Maria Braga da Cruz recorda que recebia a visita de muitos docentes que tinham conhecimento de casos de violência familiar, onde frequentemente os alunos assumiam o papel de vítimas. "É nessa medida muito importante sensibilizar não só os grupos profissionais da área da saúde ou magistrados, mas principalmente os professores e a comunidade educativa, e não esquecê-lo na formação dos docentes".

A escola como instrumento de sensibilização

"Cá para mim não se bate numa mulher. É pena que o meu pai não pense assim." De braços cruzados e de sobrolho carregado, o João - chamemos-lhe assim - é o menino que dá a cara no cartaz da campanha "Escola contra a Violência na Família", organizado pelo Sindicato dos Professores do Norte e pela Rede Europeia Anti Pobreza.
Muito provavelmente, o João - o verdadeiro, não o do cartaz - nunca viveu situações de violência familiar, nem nunca viu o pai a bater na mãe ou a insultá-la. Mas quantos meninos existem que já sentiram de perto o problema e quantos palavras amordaçadas vivem em segredo com eles?
O projecto surgiu no âmbito da Campanha Europeia contra a Violência Doméstica e teve na população escolar o seu público alvo. Apesar de ter arrancado "muito em cima da hora", como reconhece Iracema Santos Clara, professora e coordenadorada da Frente de Educação para o Desenvolvimento do SPN, conseguiu abranger cerca de seis mil alunos de catorze escolas básicas do norte do país, das zonas do Porto, Guimarães e Santa Maria da Feira.
Através de debates, dramatizações, música, cartazes e textos, a iniciativa pretendeu funcionar como uma acção de sensibilização alargada, e o seu grande mérito foi, acima de tudo, desmontar os diferentes conceitos de violência, tornando-a mais abrangente, e consolidar uma atitude de não aceitação e de intolerância face à violência. Afinal, diz Iracema Santos Clara, para crianças que estão habituados a bater na mãe "isso não é uma forma de violência, é um dado adquirido".
Momentos houve em que a campanha mostrou o quanto pode ser útil. Num dos debates, uma mãe que participava na assistência reconheceu que sofria maus tratos há mais de catorze anos e, dois dias depois, telefonou para o serviço de apoio a vítimas de violência doméstica. "Curioso foi verificar que foram as duas filhas do casal, que participaram activamente na campanha, a insistirem junto da mãe para que esta procurasse auxílio", diz esta professora.
Manuela Silva, professora na EB 2,3 de Santa Maria da Feira, foi outra das impulsionadoras deste projecto. "Foi muito interessante, porque partindo da violência doméstica, os alunos aperceberam-se dos outros tipos de violência presentes na sociedade", refere. Nas discussões de grupo, explica, os alunos questionaram-se, por exemplo, até que ponto é ou não uma forma de violência viver numa casa degradada ou não ver as necessidades básicas satisfeitas, e aperceberem-se de quem exerce essa violência". Num outro momento, a relação entre os casais de jovens namorados foi um dos pontos de partida para se discutir, por exemplo, a violência sexual.
No final do ano, os alunos do 9º B desta mesma escola, orientados pela professora Laurinda Seixas, levaram a palco uma representação baseada no tema da violência doméstica. Uma peça de teatro adaptada a partir de um texto escrito por alunos de uma comunidade local próxima de Santa maria da Feira - onde a agressividade assume um papel quotidiano -, baseada nas suas próprias experiências. "A linguagem utilizada era de tal forma agressiva que foi necessário proceder a algumas adaptações", admite Laurinda Seixas.
Os alunos encerregaram-se dos cenários e de alguma da roupa utilizada na representação. O Roberto e a Daniela têm ambos 14 anos e foram dois dos actores envolvidos nesta dramatização, constituída por vários 'sketchs' que coincidem numa mesma abordagem: as relações de violência entre elementos da mesma família e entre vizinhos. "Acaba por ser um retrato cómico da realidade", diz o Roberto, "mas uma forma "divertida" de alertar para o problema".
Apesar da larga maioria das vítimas de violência doméstica serem mulheres, as crianças e jovens, e em menor número os idosos, constituem também uma parte significativa da equação. A Liliana - personagem representada pela Daniela - é uma criança perturbada pelo ambiente que vive em casa e transmite isso na relação com os colegas. "Esta peça serve também para alertar os pais dos efeitos perversos que os actos de violência podem despertar nas crianças e nos jovens", diz a jovem actriz.
O único "senão" de campanhas como esta é o facto de não decorrerem numa lógica de continuidade. Neste momento está a fazer-se a avaliação do projecto e ainda é cedo para falar em resultados práticos. Mas pelo menos "a semente ficou lançada", refere Iracema Santos Clara. "Se vai germinar ou não é o que iremos ver..."

Ricardo Jorge Costa


  
Ficha do Artigo
Imprimir Abrir como PDF

Edição:

N.º 94
Ano 9, Setembro 2000

Autoria:

Ricardo Jorge Costa
Jornalista do Jornal A Página da Educação
Ricardo Jorge Costa
Jornalista do Jornal A Página da Educação

Partilhar nas redes sociais:

|


Publicidade


Voltar ao Topo