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Projectocracias

Na introdução a um normativo que se encontra em fase de discussão, li que "a gestão flexível não se decreta". Gostei! Todos sabemos que as mudanças não são passíveis de serem decretadas. Também gostei de ver plasmada no decreto 43/89 a ideia de que a autonomia das escolas só faz sentido se estiver intimamente ligada à ideia de projecto. Porém, quando me apercebi de que, sem sinais de projecto, as escolas se lançavam na elaboração de regulamentos internos de modelo único, apoderou-se de mim uma súbita inquietação. Se as escolas aspiram à assinatura de contratos de autonomia precisam de apresentar um projecto. Perfeito! Só não se consegue perceber porque só agora o vão conceber e fazer aprovar se (já há muito tempo!) conceberam e aprovaram um regulamento interno. Mas passemos adiante...
Ao longo dos últimos anos, os professores usufruíram de inúmeras acções de formação neste domínio, já copiaram centenas de acetatos, escutaram formadores e especialistas, coleccionaram toneladas de fotocópias e alguns créditos. Longe vão os tempos do amadorismo nesta matéria. Já podemos evocar, sem que ninguém se sinta afectado, duas pequenas histórias, que poderemos tomar por ficções, ou ternurentas e ancestrais referências para a definição de uma determinada cultura profissional. Tanto faz, pois tais episódios nunca poderiam ocorrer nos nossos dias.
A primeira das ficções passa-se numa escola do interior do país. Ao cabo de uma longa ausência, o senhor inspector fizera a sua imponente aparição. Grave, solene e indiscutível (como se espera que seja um senhor inspector) decretara a imperiosa necessidade de um "projecto pedagógico". Estabelecera também um prazo limite da tarefa de o conceber e apresentar: "que por lá voltaria, em Janeiro..."
Natal à porta, reuniu o conselho. A professora encarregada da tarefa de "desencantar um projecto" ia lendo o documento a aprovar, enquanto as restantes desfolhavam revistas e olhavam para o relógio.
A certo passo, uma professora mais atenta pediu:
- "Ó colega, importa-se de repetir a última frase?"
A colega fez-lhe a vontade:
- "No capítulo das actividades, começaremos por levar os alunos à lota..."
- "À lota?" ? repetiram as colegas em coro ? "Olha o disparate!"
- "É o que está aqui escrito" ? reagiu a encarregada da leitura.
- "Pois! É o que dá tu teres pedido o projecto à colega da Póvoa!"
Mas logo uma professora mais pragmática acrescentou:
- "Não faz mal. Risca-se lota e põe-se horta."
Assim se fez, sem que tal correcção ficasse a constar da acta.
Se o primeiro episódio decorre no interior, o segundo decorre no contexto de uma acção de formação sobre projectos, numa localidade junto ao mar.
Na primeira sessão do curso, o formador havia pedido que os formandos lhe trouxessem os projectos educativos das respectivas escolas. Os poucos que corresponderam ao pedido trouxeram-lhe cópias de planos anuais de actividades. "Nada mais tinham encontrado"...
Se o formador inquiria da serventia para as escolas de um plano sem referência a um projecto, não recebia resposta ou arriscava a maçada da leitura de "uns papéis para mostrar ao inspector".
Mais objectiva e franca, uma formanda esclareceu:
- "Ó colega, nós não somos muito dadas a projectos".
O formador era daqueles que ainda acreditavam na "formação centrada na escola, ligada às práticas, etc." Portanto, não desarmou:
- "Nunca vistes lá pelas vossas escolas um documento qualquer a que pudésseis chamar projecto educativo?"
Quebrando o silêncio que habitualmente responde a tão despropositadas perguntas, a mesma prestimosa formanda acrescentou:
- "Ter, propriamente, já não temos. Mas no ano passado tínhamos..."
- "Ó colega, um projecto educativo não se esgota num ano lectivo!" ?
exclamou o formador.
- "Imagino que não! Só que o colega que o tinha mudou-se para outra escola e levou-o com ele."
Tudo o que se faça no sentido de descentralizar, de gerar dispositivos de exercício de autonomia, tudo é mais útil que nada ter e nada se fazer. E nem quero ser exigente com o 115-A. Já me servia o revogado 172/91, poderia ficar-me pelo 43/89, ou até mesmo pelo 40/75 de boa memória. Mais importante que os normativos será o uso que deles fizermos. Muita atenção, pois, aos riscos de fraccionarmos as ex-delegações escolares em micro delegações escolares.
E não me venham com o costumeiro comentário de que "a culpa é do ministério", pois poderei juntar às duas histórias anteriores uma terceira, cuja semelhança com a realidade talvez não seja pura coincidência. Para não maçar, revelo apenas o seu epílogo. Em resposta a uma pertinente observação que uma professora dirigiu a um presidente de conselho executivo, respondeu lesto o questionado:
- "Projecto? Arranja-se vários. Há por aí muitos. Copia-se o mais jeitoso."
Num país de anedotas, é imperioso que (por mais doloroso que seja este exercício) as divulguemos para as exorcizarmos. A ocultação das realidades é que é criminosa. Reflictamos nos caminhos que estamos a tomar. Tenho detectado sinais inquietantes que me fazem pensar que estaremos a caminhar por atalhos onde a racionalidade burocrática espreita em cada esquina, quando deveríamos estar a abrir amplas avenidas.
O que têm hoje as escolas que antes da introdução do novo modelo de autonomia, administração e gestão não tivessem? Não me venham dizer que agora as escolas e agrupamentos já processam vencimentos ou asseguram o cumprimento de tarefas administrativas que antes estavam a outros confiadas. É importante desconcentrar serviços, mas não é o fundamental da questão.
Já a Lei de Bases dizia que em primeiro lugar está a Pedagogia. Rima e é verdade.

José Pacheco
Escola da Ponte/ Vila das Aves


  
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Edição:

N.º 92
Ano 9, Junho 2000

Autoria:

José Pacheco
Escola da Ponte, Vila das Aves
José Pacheco
Escola da Ponte, Vila das Aves

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