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A Propósito de uma Pretensa Reorganização ...
Ao ler os pressupostos educacionais e os princípios sobre o currículo e a avaliação que fazem parte da proposta de reorganização curricular do ensino básico, não pude evitar o sentimento de constrangimento que esse tipo de discurso me provoca. Não é porque esteja em total dissonância com o enquadramento justificativo da proposta (sobre a proposta não me vou pronunciar), na sua generalidade, mas porque, de imediato, relembrei outros discursos educativos, igualmente «politicamente correctos», com que a administração central, de vez em quando, nos tem brindado e que, apesar deles, não se vislumbram transformações qualitativamente positivas na educação das crianças e na qualidade da vida nas escolas. (Continuamos com a produção de dispositivos simbólicos para a regulação social?)
E vêm-me à memória os princípios que sustentavam as mudanças curriculares preconizadas para o ensino primário, já em 1975, e que pressupunham o respeito pelo ritmo de aprendizagem de cada aluno, a consideração das experiências vividas pelas crianças no desenvolvimento das aprendizagens e a valorização do trabalho colectivo e da cooperação. O que fizeram as escolas e os professores com esses princípios? E o que fizeram com o sistema de fases? E o que fazem agora com a ideia de unidade global do ensino básico ou mesmo com a Área-Escola? E o que dizer da avaliação formativa?
Quero com isto lembrar que a questão da transformação educativa nas escolas, designadamente no domínio da organização e do desenvolvimento curricular, não pode ser pensada numa lógica de imposição legislativa ou centralizada, mesmo que seja elaborada com o pretexto de se fundamentar em experiências inovadoras de gestão curricular, em algumas escolas.
Suscita-me alguma apreensão e até desconfiança o facto de, contrariando uma vasta produção científica no campo das ciências da educação que refere a inutilidade desta lógica de imposição (ou indução) de mudanças, a administração central insistir na sua continuidade. Permito-me, por isso, questionar se existe uma real vontade política em assegurar o cumprimento dos objectivos que a Lei de Bases do Sistema Educativo estabelece para o ensino básico e em, como se refere no documento, "contribuir para a construção de uma escola mais humana, criativa e inteligente, tendo em vista a formação e o desenvolvimento integral de todos os seus alunos e a promoção de aprendizagens realmente significativas." (p.1).
A acção profissional dos professores fundamenta-se num conjunto de valores, convicções e expectativas que a sua experiência de vida permitiu consolidar. Nesta experiência de vida integram-se, obviamente, os contextos de trabalho: as escolas e as suas especificidades organizacionais e humanas. Por outro lado, esses contextos de trabalho são cada vez mais complexos e instáveis e os problemas educativos cada vez mais conjunturais e imprevisíveis, exigindo aos professores um saber estar e saber fazer que não se formam administrativamente.
E o que dizer da formação prevista para a implementação da reorganização curricular proposta (p.20) onde se repetem os erros do passado?! Pensa-se a formação numa lógica instrumental e de algum modo ingénua por se acreditar que a acção docente se transforma pela simples reprodução e transmissão de saberes, veiculada por um grupo de "técnicos da administração central, regional e local", também eles sujeitos à mesma racionalidade formativa.
A prática profissional só se transforma pela acção, pelo desejo e pela tomada de decisão dos professores o que implica conceptualizar a formação como uma dimensão integrada na totalidade da acção educativa que constitui o quadro de vida das escolas. Trata-se, sobretudo, de criar espaços físicos e subjectivos que possibilitem e provoquem o confronto entre as práticas discursivas dos professores; que potenciem processos de aprendizagem colectiva nas escolas e que promovam a reflexão esclarecedora dos valores educativos que estão em causa. Espaços que configurem acordos éticos, políticos e ideológicos sobre o que devem ser a Escola e a Educação.
Talvez esse «percurso» necessite, ainda, de estímulo e de formas estruturadas de apoio, mas a sua construção, seguramente, não depende de saberes apenas produzidos numa relação de exterioridade com os modos de vida concretos de cada escola.

Fátima Pereira
Professora do 1º C.E.B.
EB 2,3 Amieira, S. Mamede de Infesta


  
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Edição:

N.º 92
Ano 9, Junho 2000

Autoria:

Fátima Pereira
Professora do 1º C.E.B. na EB 2,3 Amieira, S. Mamede de Infesta
Fátima Pereira
Professora do 1º C.E.B. na EB 2,3 Amieira, S. Mamede de Infesta

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