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O Algarve nas Crónicas de Manuel da Fonseca

RELIDAS passados mais de trinta anos, as Crónicas Algarvias de Manuel da Fonseca consentem ainda que na sua leitura se possa vislumbrar um Algarve de finais de 60 quando o surto turístico conheceu ou descobriu as paragens dos mares do sul. E não é sem surpresa que, através do seu lirismo anarquizante e revoltado, numa escrita depurada e um claro sentido de vagabundagem a que não escapava a sua cativante ternura evidente em muitos dos contos, divisamos, sob uma outra luz, o propósito jornalístico, vivencial
e experimentado da força da prosa lírica e encantatória de Manuel da Fonseca. Mas o que ressalta nas suas crónicas, publicadas em "A Capital", em Agosto de 1968, é ainda esse sentido de vagabundagem de quem pôde percorrer a paisagem algarvia, de Vila Real de Santo António até à ponta de Sagres, em peregrinação de andarilho de muitas e outras partidas. E o autor de Seara de Vento fez isso terna e ironicamente de mala na mão e camioneta de carreira ao pé da porta, cruzando os seus passos e olhares pelas imagens que soube fixar como pintor em paleta de cores variadas e matizadas de outros sentidos e formas. Porém, não se trata de um ver claro em estafados lugares-comuns dessa paisagem que o tempo transformou e passou a ser invadida por outras gentes: desde a viagem de comboio pela linha do sul, na companhia de duas inglesas, até descer na última estação do Sotavento, na terra do atum que deixou de ser pescado ou comerciado na sua lota e chega por estrada dos portos de Olhão (o rio desde há muito tempo assoreado e as pessoas sempre desgostosas com as obras do porto que não se fazem ou da ponte sobre o Guadiana que levou anos a lançar as amarras entre as gentes de cá e de lá - Ayamonte à vista, na súbita invasão de espanhóis pelas ruas perpendiculares traçadas a compasso pela visão do Marquês nos tempos de el-rei senhor dom José...), vislumbra-se claramente nas histórias de Crónicas Algarvias esse segundo sentido de Manuel da Fonseca saber olhar e ver com outros olhos como tudo pouco a pouco se modificara, nos hábitos e modos das próprias gentes, em tempos de televisão e da mini-saia, mesmo de amores mais descomprometidos ou atrevidos. E pela visão cinematográfica que nos oferece desse seu peregrinar (antes atravessado em páginas que perduram de Teixeira Gomes ou de Raul Brandão), é sobretudo esse outro Algarve que o leitor descobre ou entende, tantos anos decorridos sobre a intenção e origem destas crónicas.
Mas, sendo um levantamento ocasional e impressivo de uma viagem em redor das cidades e vilas algarvias, de Sotavento para Barlavento, trouxe à luz do dia esse clamoroso protesto e denúncia de como foram mutiladas pelo lápis da Censura fascista muitas das histórias "recuperadas" na sua pureza inicial: basta atentar nos "cortes",postos em destaque por Manuel da Fonseca na edição de 1986, para se entender como a "vigilância" se fazia no jeito de evitar as subtis referências a ideias ou situações que não interessava mostrar ou revelar (por exemplo, dizer que em Tavira "aos pares, soldados passam por nós" ou que naquela pensão havia "O Primo Basílio e um manual de especialização militar", ou revelar que em Olhão, nas falas com pescadores, "se ganhava três escudos por caixa a dividir pelos oito que lá estão", ou ainda proclamar, como faz o senhor bem-vestido em Faro ao referir-se à prática de aluguer de quartos ou de casas: "Já se vê, os ordenados chegam cada vez menos para a aquisição do essencial").
E, se este modo simples de denunciar certas situações se enquadra nos limites impostos a si mesmo por Manuel da Fonseca (lembremos que todas estas crónicas foram publicadas sob o título de "O Desafio do Algarve"), a verdade é que, pela visão original e pessoalíssimo do mundo e das pessoas à sua volta, num misto de ironia, subtileza e denúncia das "histórias" que sempre conta de uma forma admirável, o autor de O Fogo e as Cinzas dá a imagem real e aproximada de uma paisagem que já em 68 se começava a alterar de modo tão profundo para o bem e para o mal. Por isso, a denúncia que Manuel da Fonseca fez nas suas crónicas foi apenas o levantar de alguns problemas que não foram resolvidos e em parte estão hoje por solucionar, por entre os muitos protestos que se não escutaram. E assim o que perpassa nas páginas das Crónicas Algarvias é ainda essa pureza antiga e tradicional das gentes que se levantam em protesto e dizem aqui e agora de sua justiça, e dessas falas ou desabafos se serve para dar as imagens de uma paisagem algarvia tão alterada e, apesar de tudo, era essa a hora de escrever as suas crónicas.
O sentido poético das histórias contadas e recuperadas, a paisagem reerguida na ingenuidade de quem serviu de cicerone ou não sabia sequer dizer "de onde se podiam olhar as açoteias", tudo isso faz com que este livro se releia e entenda como a atitude de um escritor que, sempre a sorrir ou em ar de malícia, sabia apontar o que estava errado a seus olhos, mesmo que o fizesse com a sua bagagem de viajante nada indiferente aos lugares por onde passava ou às pessoas que se cruzavam no camino. Por isso, a "peregrinação" se conclui na ponta de Sagres, "o vulto do infante ainda por aqui, a lenda juntou-o para sempre a este promontório". E a viagem se completa na força incontida de uma escrita depurada e terna, nada redundante ou excessiva nos pormenores: a paisagem fixa-se em dois traços, no rosto de um pescador ou nas falas ouvidas na doca de Olhão, em galeria humanizada e poetizada por esse fascínio que é arte de saber contar uma história sem nenhum enfado nem tempos mortos na narrativa.
Sete anos sobre a sua morte, que aconteceu em manhã triste e chuvosa de Março de 1993, Manuel da Fonseca está ainda entre nós pelo entusiasmo e fascínio da sua escrita ou ainda, como afirmara Mário Dionísio, porque "uma força de prodígio, um apelo irresistível que vai de homem a homem, que muda, mudará os homens e as coisas, o apelo que ilumina e aquece toda a obra de Manuel da Fonseca, todo o seu encantamento e toda a sua vidência, toda a sua rudeza e toda a sua ternura", se pode sempre admirar nos poemas, nos contos e nas crónicas que nos deixou.

Serafim Ferreira
Crítico literário

Manuel da Fonseca
CRÓNICAS ALGARVIAS
Ed. Caminho / Lisboa.


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 89
Ano 9, Março 2000

Autoria:

Serafim Ferreira
Escritor e Crítico Literário, Lisboa. Colaborador do Jornal A Página da Educação.
Serafim Ferreira
Escritor e Crítico Literário, Lisboa. Colaborador do Jornal A Página da Educação.

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