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A Cidadania já tem um Dia

Anunciaram, há dias, os jornais que o Ministério da Educação determinou um dia para as escolas celebrarem a cidadania, o dia 16 de Março. Ignora-se que razões ponderosas terão presidido à escolha de tal data para tal fim. Nada obsta, porém, a que se pense haver aí a intenção de sublinhar a importância do levantamento militar das Caldas, que passou à história como a "intentona do 16 de Março"...Esta presunção até pode sair reforçada, se lhe associarmos o facto de que foi criado um "Grupo de Contacto entre os ministérios da Educação e da Defesa Nacional para acompanhar as questões da presença nos currículos dos temas da cidadania" (in Público, 26 de Fevereiro de 2000).
Seja como for, o que, entretanto, é assinalável é o estabelecimento de uma data para comemorar a cidadania. E, mais assinalável que o estabelecimento da data em si, é a necessidade formal de a estabelecer. À semelhança do que acontece com o calendários religioso, em que cada dia da semana é votado à memória de figuras veneráveis, na expectativa de que os humanos relapsos lhes imitem as virtudes, a cidadania entra, assim, no calendário civil da República, uma vez em cada ano, apelando à redenção dos homens contra todos os atropelos cometidos na roda dos dias.
Para que tudo isto tenha sentido, é necessário admitir que a cidadania se transformou num ícone, num bem simbólico inacessível ao comum dos mortais, e que, nessa instância, deixou de ser um valor encarnado nas relações sociais e políticas, que passaram a reger-se por outros princípios. Substituída nas práticas quotidianas por valores de eficácia, assentes na racionalidade estratégica, mais conforme com a figura ideológica do ser individual, portador de potencialidades de desenvolvimento indefinido e dos respectivos direitos de autonomia na sua realização, a cidadania foi sucumbindo à contradição imposta pela lógica da concorrência globalizada: - pressupondo a existência de bens comuns, como base da regulação social, vê esses bens comuns reduzidos à condição de bens de mercado, onde deixam de ser comuns.
Nem a educação, prometida como o verdadeiro alfobre da cidadania, escapou a essa contradição ao deixar-se parasitar, gradualmente, por sistemas de ensino, que estimulam e valorizam as diferenças para melhor as converter em escalas de proveito próprio. Não sendo objecto de proveito próprio, a cidadania só pode ser objecto de comemoração. É bem verdade que o Ministério pretende introduzi-la, como tema, nas disciplinas de Língua Portuguesa e Filosofia comuns aos cursos gerais e tecnológicos, sublinhando, entretanto, que "não deve haver compartimentos estanques para o seu tratamento", para o que aparece, até, convocada "a importância cívica da Matemática", como se pode ler na fonte já referida. Louváveis e generosas palavras estas que o Ministério nos dá a ler... Mas temo bem que elas venham a converter-se em pouco mais que conteúdos discursivos que rendam nos exames..., sobretudo, se eles constituírem itens dos programas. Porque a grande questão da cidadania é fazer ou não fazer parte da vida. E a vida das escolas não é fácil, nem, sobretudo, a vida fora das escolas que entra nelas...Será que isso se resolve, apenas, pela escolarização da cidadania?

Manuel Matos
Faculdade de Psicologia e das Ciências da Educação
Universidade do Porto


  
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Edição:

N.º 89
Ano 9, Março 2000

Autoria:

Manuel Matos
FPCE, Univ. do Porto
Manuel Matos
FPCE, Univ. do Porto

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