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Eça de Queirós - Entre o Riso e a Verdade nos 100 Anos da sua Morte

José Maria EÇA DE QUEIRÓS nasceu em 25 de Novembro de 1845, na Póvoa de Varzim, mas logo depois de ter nascido foi confiado aos cuidados de uma ama que vivia em Vila do Conde (Ana Joaquina Leal de Barros), que foi madrinha de baptismo e o criou até aos seis anos de idade. Depois dos dez anos foi educado no Colégio da Lapa, no Porto, de que era director o pai de Ramalho Ortigão, que seria o grande amigo do autor de Os Maias até ao fim da sua vida. Em 1861, ingressa na Universidade de Coimbra para frequentar a Faculdade de Direito e aí se licenciou em 1866.
Por isso, foi no ambiente de Coimbra, entre a boémia e o culto das letras, que Eça descobriu a tendência natural para a literatura, no convívio com Antero de Quental, João Penha, Teófilo Braga e outros. Mas acabou por se radicar em Lisboa, em Junho de 1866, com escritório de advogado em pleno Rossio, para se consagrar a uma actividade que não abandonaria até ao fim dos seus dias: o foro só lhe interessava de forma episódica porque a existência física se desdobraria até 1900 - ano da sua morte - entre a vida diplomática e a literatura. Em 1869, empreendeu com o seu amigo Conde de Resende uma longa viagem pelo Egipto, resultando dessa experiência alguns textos publicados sob a forma de folhetins no"Diário de Notícias" em Janeiro de 1870, com o título De Port-Said a Suez. E neste mesmo ano, Eça de Queirós foi nomeado administrador do concelho de Leiria, que desempenhou ao longo de vários meses, até ingressar na carreira diplomática, primeiro na Baía, depois em Havana, Newcastle, Bristol e Neuilly, em França. Mas nem por isso Eça abandonara a vida literária, porque foi a partir dos começos de 1870 que se destacou pela sua participação nas célebres "Conferências do Casino", em Lisboa, de imediato foram proibidas às ordens e ao mando do ministro de má memória Ávila e Bolama.
Em Março de 1872 foi nomeado cônsul nas Antilhas Espanholas e partiu para o início da vida diplomática que lhe permitiu dispor de tempo e condições para erguer a obra literária que até hoje tem perpetuado o nome de Eça de Queirós como um dos vultos mais importantes da literatura do século XIX e XX. Começaram a definir-se as coordenadas de uma pessoalíssima atitude de escritor que marcará toda a sua prosa ficcional: instalada no reino da verdade, não deixa de dar largas à fantasia imaginativa, que sabe recriar os ambientes em pinceladas amplas e só aparentemente "fantasistas". A sua posição/oposição à política do tempo, num período demasiado confuso da vida portuguesa, bastante marcada pelas alternâncias dos governos, quando as instituições monárquicas entram no caminho que as levará à sua queda anos mais tarde, tudo isso é o pano de fundo em que Eça situa as "histórias" dos romances que, sob a luz intensa e penetrante de uma fina ironia, escreverá até ao fim da vida. Colocado como cônsul em Newcastle, em Novembro de 1874, é aí que escreve os seus primeiros livros, de que envia a Batalha Reis uma primeira versão de O Crime do Padre Amaro, cujos primeiros capítulos se publicam em Fevereiro de 1875 na Revista Ocidental. E logo se seguem O Primo Basílio, A Capital, o Conde de Abranhos e ainda A Ilustre Casa de Ramires.
Em 1880, foi nomeado cônsul em Bristol e escreve com regularidade no Diário de Portugal, então dirigido por Lourenço Malheiro, onde publica em folhetins O Mandarim e começa por essa altura a escrever o livro que será, sem dúvida, a sua obra-prima Os Maias, só editado em 1888. A partir de Bristol, e depois do seu casamento e dos quatro filhos que nasceram, a vida de Eça não tem descanso, mas a escrita impõe-se sempre para lá de todas as desilusões e mágoas, mesmo dos amigos que viu partir, como no caso da morte trágica de Antero, grande amigo e companheiro de muitos sonhos e projectos, ou a seguir a de Oliveira Martins, outro companheiro de muitas lutas. E assim Eça se refugia mais tarde no recanto de Neuilly, na desilusão da doença e projectos literários de que fala nas cartas ao velho amigo Ramalho Ortigão, mas o estado de saúde agravou-se e a meio da tarde de 16 de Agosto de 1900 morreu na casa de Neuilly, sendo o corpo trazido em Setembro desse ano para o Alto de São João, onde foi sepultado com todas as honras fúnebres. E de longe, em Paris, Émile Zola não deixava de dizer a um jornalista português, Xavier de Carvalho de seu nome: "Perderam agora um grande romancista, o vosso Eça de Queirós. Tenho todas as suas obras. E considero-o superior a Flaubert, que todavia foi o meu mestre".
Escritor que soube fixar como poucos, em termo estéticos e humanos, as características essenciais da sociedade do seu tempo, Eça tem sido objecto de aprofundados estudos literários e continua a ser hoje um dos prosadores portugueses mais estudados, como se comprova pela edição crítica das suas obras em curso. A vinculação de toda a sua arte e postulados que eram de facto pessoais (diz Antero numa carta após a leitura da versão definitiva de O Crime do Padre Amaro: "Quanto ao artístico, Você não precisa que lho indique. É um artista consciente, sabe muito bem o que faz. O seu estilo, à parte alguma incorrecção e uma certa pobreza de vocabulário (Você nunca quis ler os clássicos!) é admirável. Já há muito que eu tinha notado que é, entre nós, o único que nunca é banal"), marcam, de forma superior, a elevada e inconfundível qualidade do seu estilo literário, sempre preciso e exacto nos contornos mais subtis e repleto de tonalidades que se redescobrem em cada nova leitura.
Fruto e consequência directa dos atropelos do tempo em que viveu, numa época de radical transição de valores de toda a ordem, a obra literária de Eça inscreve-se realmente naquilo que foi, no fim de contas, a divisa da sua vida e da sua obra: "Sobre a nudez forte da verdade, o manto diáfano da fantasia". Na verdade, se exceptuarmos as obras essenciais de Eça (que são exactamente O Crime do Padre Amaro, O Primo Basílio e em especial Os Maias (onde se condensa, como um todo absoluto, as grandes coordenadas do espírito queirosiano), todos os livros de Eça se revelam, afinal, como retalhos, ainda que magistralmente escritos, porque a "escrita" é no autor de A Relíquia a suprema afirmação da sua qualidade artística, que oferecem a imagem verdadeira dos homens e do tempo que conheceu. Através de um humor calculado e de uma ironia que nunca é gratuita ou desnecessária, a voz literária de Eça fez estremecer os alicerces mais fundos de uma sociedade cuja psicologia humana e social soube retratar de forma exemplar e ainda hoje ressoam, em todos os planos, os ecos que perduram na memória dos seus leitores, através de personagens como o conselheiro Acácio, João da Ega, Artur Curvelo, Conde de Abranhos, Alencar, Zé Fernandes, Teodorico, padre Amaro, Carlos e Afonso da Maia, o primo Basílio - uma infindável galeria de retratos humanos que superaram o seu tempo e se afirmam ainda como exemplos típicos de uma sociedade e de uma mentalidade que pouco se alterou nas estruturas essenciais. Porque, como afirmou Vergílio Ferreira, que foi um dos seus leitores e estudiosos ao longo de muitos anos, "o horror à melancolia num Eça era a expressão de uma fuga. de uma neutralização de uma verdade fundamental pela aparência de um mundo sólido e confiante. Assim o riso foi a expressão generalizada, ou quase, desse mundo."
Na passagem que neste ano 2000 se deve celebrar dos cem anos da morte do autor de A Cidade e as Serras, pode uma vez afirmar-se que Eça superou o seu tempo e o ideário de uma mentalidade burguesa que imperava no século XIX e passou depois em certa medida ao longo do século agora no fim, não pela ignorância ou indiferença, mas pela ironia, pela entronização entre o humano e o modo sarcástico de apreciar ou captar esse mundo. E daí que toda a obra queirosiana, no que nela existe de verdadeiramente grandioso e primordial, se desdobre entre o riso e a verdade, entre aquilo que foi o sentido da sua própria vida: a ironia como forma implacável de atacar os "pontos fracos" ou mais vulneráveis de uma sociedade que mal se conhece e não tem emenda possível nos seus erros e desmandos de toda a ordem. Se Eça soube retratar esse mundo de gente pacatamente marcada por um provincianismo enraizado no seu espírito (e está longe de se atenuar em muitos aspectos, como todos sabemos), foi essa a lição maior que deles nos ficou, na leitura e releitura atenta dos seus livros, na redescoberta que a todo o momento se pode fazer das suas melhores e mais sublimes páginas através de uma prosa clara, incisiva e insuperável. Por isso, repetimos, cem anos depois da sua morte, Eça está realmente ainda entre nós, vigilante, crítico, de dedo apontado aos nossos males e aos nossos vícios.

Serafim Ferreira
Crítico Literário


  
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Edição:

N.º 88
Ano 8, Fevereiro 2000

Autoria:

Serafim Ferreira
Escritor e Crítico Literário, Lisboa. Colaborador do Jornal A Página da Educação.
Serafim Ferreira
Escritor e Crítico Literário, Lisboa. Colaborador do Jornal A Página da Educação.

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