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Os Frankfurtianos e a Bruxa de Blair

O caderno "Mais!" do jornal Folha de S. Paulo trouxe domingo (10/10) uma entrevista bastante interessante com o filósofo alemão Peter Sloterdijk. O ponto alto da entrevista, a meu ver, é quando o filósofo diz aquilo que vários da minha geração sentiam já há muito, a saber: "a Escola de Frankfurt está "morta" em uma reunião de debates entre frankfurtianos, o que assistimos, continua ele, é que "o tédio mata", e o "público boceja" (p. 5).
A Escola de Frankfurt é o movimento filosófico que abrigou, entre outras, as figuras célebres da filosofia social alemã do século XX, como Walter Benjamin, Max Horkheimer, Theodor Adorno, Herbert Marcuse e Jürgen Habermas, sendo que este último está vivo, trabalhando activamente, e em polemica com o próprio Sloterdijk. Muitos foram educados por ela na juventude, como eu mesmo. Todavia, de fato, para o bem e para o mal, os filósofos da minha geração, no Brasil, aprenderam ou estão aprendendo a valorizar as conquistas da gerações mais novas de filósofos analíticos, tais como Donald Davidson e Hilary Putnam, por exemplo, e a ver a filosofia social e política como um campo que necessita urgentemente ser transformado, pois de fato "o tédio mata" a discussão sobre "ideologia", a ideia de "crítica emancipatória" ou mesmo as recordações de "maio de 68" já não movimentam mais os meus colegas mais ativos e já não faz a cabeça dos alunos mais promissores, mais curiosos e melhor formados. Todo o discurso da Velha Escola de Frankfurt, nos últimos anos, com o fim do comunismo, caiu nos braços de muitos marxistas ortodoxos, que quiseram "se modernizar". E eles fizeram com Adorno, em meses, aquilo que levaram mais de um século para fazer com Marx eles vulgarizaram o que era o supra sumo do invulgarizável no meu tempo de garoto, o pensamento de Adorno e seus colegas.
Diante disso, não há um dia em que não me vem à cabeça a pergunta sobre o que é vivo e o que é morto na Velha Escola de Frankfurt. Somente ontem uma resposta começou a aparecer na minha frente, dentro do cinema, quando eu assistia um bom filme do momento, "A Bruxa de Blair".
A ideia do filme é boa. Três jovens, dois moços e uma garota, pegam suas câmaras e vão investigar no interior dos Estados Unidos o lugar sede da lenda da existência de uma bruxa ou coisa parecida que, em um passado não muito distante, teria vivido na floresta e teria sido responsável pelo sumiço de várias crianças. Os jovens vão até o lugarejo próximo à floresta e fazem indagações aos moradores mais antigos. Escutam de um morador mais prolixo os detalhes do que teria sido o assassinato das crianças. De fato, alguém as havia matado, e o procedimento era o seguinte: colocou todas as crianças voltadas para a parede e ia pegando uma a uma. Apanhado pela polícia, o tal assassino (se não me engano não era uma "bruxa", mas um ermitão) foi perguntado porque virava as crianças para a parede, ao que ele respondeu que assim fazia porque não aguentava ver os olhos delas.
Depois disso o filme continua com os jovens se embrenhando na mata, em busca das pistas do lugar onde teria vivido a tal bruxa ou ermitão, continuando o documentário ? o "Projeto Bruxa de Blair". Aliás, diga-se de passagem, o filme é todo ele apresentado como a sequência do documentário, ou seja, com as cenas filmadas reciprocamente pelos personagens, que teriam sido encontradas após algum tempo do desaparecimento deles. No desenrolar do filme os jovens ficam perdidos na floresta e, na medida em que são tomados pelo medo, começam a regredir, a se comportar como crianças, ora chorando ora tomando atitudes inconsequentes (um deles joga o mapa fora, por não conseguir lê-lo), ora rezando e pedindo desculpas aos pais por estarem naquela enrascada etc. Em um dado momento do filme um deles desaparece. E aí os outros dois tentam achá-lo. Encontram uma casa, à noite, entram na casa e escutam o colega. O final é a câmara da moça, a câmara que ia mais atrás, pegar um dos moços já virado para a parede, parado, e aí o documentário (e portanto o filme) termina com esta própria câmara filmando o chão se aproximando. O que se conclui, facilmente, que a moça também é apanhada e que também seria colocada contra a parede. Um detalhe: a casa toda é marcada por mãos de crianças na parede.
Quando saí do cinema eu sabia perfeitamente o que era vivo na Velha Escola de Frankfurt: o tema do medo enquanto regressão elevado à condição de tema filosófico, e não meramente psicológico.
A bruxa jamais teria tido sucesso em atrair os três jovens para sua casa se eles não se comportassem como uma espécie de Joãozinhos e Mariazinhas. A cada gesto regressivo, fosse ele um choro ou uma troça infantil, mais crescia a força de atração da bruxa e mais o medo aumentava. Mas o medo, no filme, em um determinado momento deixa de ser o medo individual, empírico, de cada um; o medo torna-se uma condição ambiental a floresta é o ambiente do medo na medida em que ela é o escuro, ela é a não-cidade, ela é o lugar da inexistência das regras de previsibilidade. Mas a floresta, em um determinado momento do filme, também não é mais a floresta empírica, mas sim uma floresta completamente metafísica. Tanto é que até à metade do filme os personagens afirmam: ?não podemos estar perdidos, não na América, pois aqui já devastamos todas as florestas e esta deve ser muito pequena.
Mas o que os personagens não sabiam é que ela não tinha tamanho, dado já não ser mais uma floresta empírica. Ela é o campo metafísico de luta entre a fonte de medo e angústia, que aparece como fruto da presença do desconhecido, e o desejo do homem de encontrar a clareira, o desejo do homem de devastar toda a floresta expulsando dela todos os mitos, inclusive e particularmente portanto todas as bruxas. Mas a clareira, onde existe a habitação, onde a floresta é interrompida, é exatamente não a cidade, mas a casa da bruxa: ali, os homens e mulheres que saíram da menoridade pela sua própria razão (é interessante notar que cada câmara, na mão de cada personagem, não cessa de filmar e iluminar cada local) só entram porque tal saída da menoridade implica, ao mesmo tempo, um projeto no qual a menoridade reprimida reaparece. A saída da menoridade revela-se como uma não saída. Daí a cena final pegar o adulto voltado para a parede, na condição de quem espera a morte como toda e qualquer criança que ali entrasse, porque foi atraído para ali na medida em que participou da luta entre a angústia do desconhecido e o desejo de tudo iluminar.
Isto que eu contei para vocês, que eu assisti em filme, está em uma outra forma metafórica no principal livro da Velha Escola de Frankfurt ? o Dialética do Iluminismo (1947). Se tomado como mais uma metáfora, e não como teoria, este livro ainda não está morto. Como metáfora, ele está tão vivo quanto a o filme e quanto a própria Bruxa de Blair.

Paulo Ghiraldelli Jr.
Universidade Estadual Paulista / Brasil
paulo@sunline.com.br
http://www.filosofia.pro.br


  
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Edição:

N.º 88
Ano 8, Fevereiro 2000

Autoria:

Paulo Ghiraldelli Jr.
Universidade Estadual Paulista, Brasil
Paulo Ghiraldelli Jr.
Universidade Estadual Paulista, Brasil

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