Página  >  Edições  >  N.º 88  >  Fim da História? Nem pensar, "a coisa ainda mal começou"

Fim da História? Nem pensar, "a coisa ainda mal começou"

O último passo antes do fim da história. Este é o título de um texto que recebi recentemente do Brasil. Neste escrito o autor considera que a nossa linha editorial se encontra desactualizada. Nós não percebemos que para a História chegar ao fim falta apenas um pequeno passo. E esse passo centra-se na privatização dos diferentes órgãos do Estado. Privatizada que está toda a economia e os diferentes sistemas que enformam o Estado, o que actualmente impede um maior desenvolvimento das sociedades, segundo o nosso leitor on-line, é o facto dos governos se terem transformado em estruturas freadoras da produtividade e do desenvolvimento a nível mundial. Na opinião deste nosso leitor é de todo necessário privatizar os governos, em particular privatizar os parlamentos pois não tem dúvida de que se os diferentes órgãos que constituem o Estado fossem privatizados, e entregues ao controle dos que de facto fazem andar o mundo, seriam muito mais eficientes e responderiam melhor às necessidades dos povos. A privatização e a sujeição de "tudo" à lógica de mercado é o último passo a dar para que se possa então falar de fim da História. Persistir, como fazemos no nosso jornal, em falar de vida e de espaço público é, diz o leitor, induzir as pessoas em erro e acrescenta "é contribuir para atrasar um novo ciclo histórico, o fim da História". Se estas ideias não andassem por aí ficar-me-ia pela leitura mas este texto fez-me lembrar ideias velhas que talvez permitam encarar situações novas. São algumas destas ideias que aqui ficam este mês de forma linear.

1. A prática de vida quotidiana dos membros que constituíam uma tribo reproduzia e perpetuava essa tribo. Uma reprodução não apenas física, no sentido de produzir a sua própria descendência, mas também social. Através de tudo o que faziam esses homens, mulheres e crianças não reproduziam apenas a espécie, mas reproduziam uma forma social específica, isto é, um grupo de seres humanos capazes de realizar de forma característica actividades específicas. Esta especificidade não era o resultado de características próprias da sua natureza de homens, mulheres e crianças, como, por exemplo, é da natureza dos pássaros fazer o ninho, por os ovos, chocá-los, alimentar as crias até que estas se tornem autónomas e se lancem livremente no espaço. No seu dia a dia, os membros da tribo praticavam e perpetuavam uma resposta social específica a condições materiais e históricas particulares. Para os que viveram esses tempos podia parecer que a História terminava ali. Mas não foi o fim da História.

2. A vida prática dos escravos reproduzia a escravatura. Com o seu modo concreto de viver o quotidiano, os escravos não só permitiam a sobrevivência material dos seus senhores como se reproduziam a si mesmos fisicamente, assim produzindo novos escravos. Com a sua vida quotidiana os escravos também reproduziam os instrumentos com que os senhores os dominavam e reprimiam, bem como as suas ideias e hábitos de submissão aos senhores. Nas sociedades esclavagistas a relação senhor-escravo a todos parecia ser natural e eterna. Sabemos no entanto que nenhum homem ou mulher nasceu senhor ou escravo. Sabemos que a escravatura foi uma forma social bem definida à qual os seres humanos se submeteram em condições materiais e históricas bem determinadas. Para os que viveram esses tempos podia parecer que a História terminava ali. Mas não foi o fim da História.

3. A actividade viva e quotidiana dos trabalhadores assalariados reproduz o trabalho assalariado e o capital. Tal como aconteceu com as mulheres e os homens da tribo e com as escravas e escravos da sociedade esclavagista, as mulheres e os homens que vendem o seu tempo e a sua capacidade de trabalhar por um salário reproduzem a população, as relações sociais e o modo de pensar desta sociedade. Numa palavra, reproduzem as formas sociais da sua vida quotidiana. O sistema capitalista ? tal como aconteceu no sistema tribal e esclavagista ? é uma respostas determinada a condições materiais e históricas particulares. Para alguns que vivem e adoram este tempo pode parecer que finalmente a História termina aqui. Mas o edifício que a humanidade constrói não tem sequer ainda os alicerces acabados.

4. Duas das grandes diferenças entre a sociedade capitalista (seja na versão do capitalismo privado seja na versão do capitalismo de estado) e as formas historicamente anteriores da actividade social, são a velocidade e a acumulação, já não só de capital, mas também de informação e conhecimento. Cada vez mais, a actividade prática nas sociedades capitalistas transforma as condições materiais às quais, no início, o capitalismo deu resposta. Já não basta perceber como os assalariados, na sua actividade quotidiana, reproduzem as condições da sua própria exploração, mas entender como essa actividade elimina as condições materiais a que inicialmente o capitalismo dava resposta. Importa procurar entender o modo como na vida quotidiana se produzem as condições materiais e as ideias que fazem com que o capitalismo seja progressivamente mais incapaz de responder às necessidades humanas a que originalmente respondeu. "O fim das ideologias". "A semelhança das propostas políticas das diferentes organizações partidária". São o prenúncio da falência de um sistema e não a sua maturidade como nos revela a aparência ? a aparência é o contrário da realidade. Quem vive hoje não assiste seguramente ao fim da História. Pode é, sem se dar conta, estar a viver e a construir, com a sua actividade viva, o início do fim de um sistema.

5. Muitos, não percebendo a falência do sistema em que teimam em viver, clamam e reclamam por reformas. O certo é que umas, quando se fazem, agudizam os problemas que queriam resolver. Outras, quando se estudam, desactualizam-se antes dos estudos estarem concluídos. Algumas, quando experimentadas, entram em ruínas antes de serem avaliadas. Alguns políticos, avisadamente, navegam à vista, ou não governam porque sabem que ? no ponto e que a coisa está ? essa é, de momento, a melhor maneira de os donos do mundo se irem governando.

6. Quer-me parecer que para o interesse da maioria o que importa não é a reforma do Estado mas a sua reinvenção. À saúde, ao sistema fiscal, à segurança social, ao ensino, ao sistema judiciário e a todos os outros sistemas que configuram o Estado não fazem falta reformas, é preciso reinventá-los. E depressa antes que os donos do mundo se decidam pela privatização do Estado e do seu governo. Um Estado que já não será dos cidadãos, mas dos accionistas. Um Estado absorvido pela lógica de mercado.

7. Os entusiastas da privatização da saúde, da educação e da segurança social, estão em pleno florescimento. Nalguns países a privatização do sistema prisional está em pleno desenvolvimento. São já muitos a "demonstrar", por a+b, como o sistema judiciário poderá ter melhor eficácia se privatizado. As empresas de segurança vão querendo mostrar que a segurança privada é melhor que a polícia. As empresas especializadas na organização de exércitos privados estão em alta. Presumo que um Parlamento nomeado pelos acionistas do Estado privado será mais eficaz do que aquilo que temos...

8. Mudar? Revolucionar? Para quê? Não será melhor deixar andar? (...) Não será melhor deixar que os donos do mundo se encarreguem de construir, segundo os interesses do mercado, o "melhor Estado"? Não um Estado de cidadãos ? ineficaz e fora de moda ? mas um Estado de grandes, médios e pequenos acionistas, servidos, "naturalmente", pela grande multidão de escravos capazes de reproduzir a resposta adequada a este novo tempo histórico.

Fim da História? Nem pensar, a coisa ainda mal começou.

José Paulo Serralheiro


  
Ficha do Artigo
Imprimir Abrir como PDF

Edição:

N.º 88
Ano 8, Fevereiro 2000

Autoria:

José Paulo Serralheiro
Professor e Jornalista. Director do Jornal a Página da Educação.
José Paulo Serralheiro
Professor e Jornalista. Director do Jornal a Página da Educação.

Partilhar nas redes sociais:

|


Publicidade


Voltar ao Topo