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O "Achamento" no Brasil 500 Anos Depois

Regressado de uma terceira viagem ao Brasil nordestino, que julgo conhecer o bastante para sustentar a opinião de que um Portugal antigo é bem visível entre as gentes e as terras que se estendem desde as cidades litorâneas do Recife, Olinda ou Salvador até aos confins da Chapada Diamantina, surpreende-me ler, em jornais de Lisboa, a propósito das comemorações dos quinhentos anos do Achamento do Brasil, que "nós estamos a forçar o Brasil a comemorar-nos e a comemorar-se ele" e que "o problema mais estranho é que ele nãos os queira comemorar."
Surpreendo-me, porque vi, em Pernambuco e na Baía, diversas manifestações que exprimem ideia diferente. Umas (poucas), críticas, evocando o desagrado natural com que os índios remanescentes da colonização acolherão uma efeméride que lhes recorda o desapossamento das suas terras e da sua liberdade; outras, bem mais numerosas, fazendo jus à assunção plena de um país que vale pelo que é e pelo que foi, sem se mortificar com complexos por ter dizimado os índios donos da terra e escravizado os negros arrebanhados de África, quando isso era doutrina proclamada por Reis e Papas, a bem do Comércio e da Cristianização, e, no dizer de Pedro Calmon, na sua História do Brasil, "a moral do comércio honrava-se no costume e na tradição" num tempo em que Bispos escravocratas e Fidalgos negreiros eram construtores de Igrejas e de Misericórdias. E cuja "má" consciência um famoso abolicionista, Rui Barbosa, quis apagar da memória dos brasileiros, mandando destruir documentação relativa a esse negro passado.
De facto, vejo a Folha de S. Paulo, de 29 de Agosto, dedicar ao "Achamento" algumas páginas do seu caderno cultural, com texto de Jean Marcel Carvalho França; acompanho, nos diários de Pernambuco e nos noticiários da Televisão, uma polémica travada em torno do monumento evocativo da efeméride, da autoria do famoso arquitecto Francisco Brennand, que será implantado no Recife, e diversas informações a respeito das festividades que ocorrerão em Porto Seguro; detenho-me diante de uma edição de luxo de um livro que reproduz a documentação relativa à viagem de Pedro Álvares Cabral, organizada para a Fundação Joaquim Nabuco por H. Fontoura da Costa; por um livro editado pela mesma Fundação da cidade do Recife tomo conhecimento das comunicações apresentadas num Seminário Internacional, realizado naquela cidade em Outubro de 1998, "em comemoração dos 500 anos do Descobrimento"; em edição da Bertrand Brasil, do Rio de Janeiro, leio um conjunto de ensaios - Angola e Brasil nas Rotas do Atlântico Sul - que os organizadores inserem na "oportunidade aberta pelos debates académicos da chegada dos portugueses ao Brasil"; por último, salta-me à vista uma edição da Vozes, de Petrópolis, Os 500 anos - A conquista interminável.
Todos estes " sinais" de um amplo envolvimento nacional, recolhidos ao acaso, em menos de um mês de viagem através do Nordeste brasileiro. Afinal, o Brasil comemorativo mexe-se, por iniciativa própria, sem precisar dos estímulos de Portugal para definir o que lhe respeita e interessa.
É todavia verdade, como observa Eduardo Lourenço numa entrevista saída no PÚBLICO de 22 de Agosto, que "o Brasil de hoje e o Portugal de hoje
estão em duas galáxias diferentes." Dúvidas ( ao menos pelos efeitos da decantada globalização) ponho eu na asserção seguinte: "Em vez de se aproximarem estão afastando-se."
Já se queixavam do mesmo, nas primeiras décadas deste século, o brasileiro João do Rio e os portugueses João de Barros e Nuno Simões, só para mencionar alguns dos publicistas mais esforçados no estreitamento das relações entre os dois países, esfriadas sobretudo a partir da independência da que fora a mais importante colónia de Portugal.
As perspectivas de restabelecimento de boas relações, durante a Primeira República, criadas pela viagem ao Brasil do Presidente António José de Almeida, não se repetiram durante a Ditadura de Salazar, que olhava o Brasil com desconfiança: era ali que se acolhiam os "renegados" do Regime e era do Brasil que chegavam às colónias de África "maléficas" inspirações independentistas.
A própria viagem, em 1951, pelo Império Português, do grande teórico do luso-tropicalismo, Gilberto Freyre, foi muito pensada e repensada, não obstante as garantias dadas pelo então ministro Sarmento Rodrigues, que faria o convite, e a certeza de que o sociólogo, com reputação internacional,
seria devidamente "enquadrado" por acompanhantes fiéis ao Regime. Como foi...
É também verdade que no Brasil permanecem ressaibos da colonização (compreensíveis e próprios de todas as ex-colónias), de que foi talvez o mais agressivo intérprete, em 1925, o cronista António Torres, com o seu livro As Razões da Inconfidência.
Esses ressaibos continuam, provavelmente já sem a verrina daquele iconoclasta demolidor dos "mitos lusitanos", mas também provavelmente menos visíveis nas regiões onde as "raízes" do velho Portugal não secaram de todo e até fazem parte do inconsciente colectivo, algumas vezes assumido, outras, inimaginado.
Tais ressaibos estão patentes, por exemplo, na simples recensão feita à recente edição brasileira do livro de Eduardo Lourenço, Mitologia da Saudade, que Marcelo Coelho assina na Folha de S. Paulo de 5 de Setembro:

Um livro sobre a saudade, escrito por um intelectual português, tem tudo para provocar reacções alérgicas no público brasileiro. Não há coisa a que sejam mais refractários do que a cultura portuguesa. Para nós, é quase uma contradição em termos. Fernando Pessoa e José Saramago só passam por nossa alfândega porque recalcamos a lusitanidade deles.(...) Tomamos posse virtual desses dois grandes escritores portugueses, portanto, sem abandonar nossa estranheza, nosso desdém, pela lusitanidade.

O jornalista considera ainda que Eduardo Lourenço, neste livro, propõe uma "desistência" da mitologia lusitana:

É como se Eduardo Lourenço estivesse falando de alguém que já morreu (...) Uma desistência, sem dúvida; mas uma maravilhosa desistência, essa que Eduardo Lourenço, com estilo admirável, propõe a Portugal.
Quanto a nós, brasileiros, acostumados à imagem de um país futuro, o contato com um país do passado pode nos esclarecer bastante.

Muitos outros brasileiros, seguramente, escreveriam coisa diferente sobre o livro de Eduardo Lourenço. Mas é preciso viajar pelo Brasil profundo (ou pelos vários Brasis(?), que se espraia desde as capitais litorâneas até ao imenso interior, onde mal se lêem jornais e não ecoam os debates académicos, para constatar que há outras verdades a respeito das imperecíveis ligações do Brasil a Portugal, em que vale a pena apostar - sem traumas nem complexos, apenas em nome das afinidades de culturas e sensibilidades que irmanam os povos e melhoram a humanidade.
E quanto aos "mitos" e "anti-mitos" que emolduram a nossa comum história, bem se poderia condescender com Eça de Queiroz, quando observa, numa crónica sobre o Francesismo enquistado na cultura erudita portuguesa, que "a alma de um povo define-se bem a si mesma pelos heróis que ela escolhe para amar e para cercar de lenda." Ou, no tempo que passa, com o professor de História, na Universidade de Pernambuco, Severino Vicente da Silva, que disse durante aquele referido Seminário, a propósito da mágoa que alguns brasileiros sentem por não terem sido colonizados pelos holandeses (em lugar dos portugueses), que ocuparam, no século XVII, como é sabido, o Nordeste, durante cerca de três décadas:

Nada temos contra os mitos, eles são fundantes e necessários a todas as nações e povos. São eles que unem as populações e fazem, em grande parte, surgir as nações.(...) Sonhar com um passado que deveria ter sido, negar o que foi vivido, é recusar-se como o sujeito que hoje se é.

Isto foi dito por um brasileiro. Mas, quanto à possibilidade da emergência, entre os portugueses, em momentos cruciais, dos "mitos históricos" ( ou de um psiquismo deles resultantes) que, durante largos séculos, condicionaram o inconsciente colectivo, que pensar da singularíssima, espantosa e admirável adesão dos portugueses de hoje à causa de Timor?

Leonel Cosme
Gondomar/Porto
escritor, investigador


  
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Edição:

N.º 87
Ano 8, Janeiro 2000

Autoria:

Leonel Cosme
Escritor - Jornalista, Porto
Leonel Cosme
Escritor - Jornalista, Porto

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