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Antropologia da Criança - O Que Era, Já Não Sou. Ou Talvez, Torne a Ser o Que Era

Antropologia da Criança - O Que Era, Já Não Sou. Ou Talvez, Torne a Ser o Que Era

Ensaio com palavras de Antropologia da Educação

Para a Sevilhana que me fez e teima em viver!

Digo ensaio com palavras, para não aborrecer o leitor com o elegante palavrão de ensaio com conceitos, que usamos no restrito âmbito da academia. Onde moram os eruditos. Que falam das análises, como se a realidade fosse um modelo feito de conceitos. E não a experiência quotidiana da afectividade e dos tostões. Essas duas moedas de troca entre seres humanos, que acaba por formar o elo fundamental do social: a família, que ouvi comentar a um grupo de garotos e garotas, que falavam na rua. Falavam dum assunto bem simples: essa realidade que resulta das trocas amorosas e da economia do trabalho, que denominamos família.


1. O milénio que acaba. Primeiro movimento: Abertura.

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3. Porquê falar de família hoje? A resposta é simples: temos em frente de nós o começo dum século. E o começo dum século que é um milénio, conforme as contas que os humanos fazemos. Já temos pensado, desde antigamente, que mil anos íamos viver, mas nunca dois mil. E a dois mil entramos. Porém, quais, as perspectivas? Milientas, como gosto dizer; em todos os aspectos: nos trabalhos, nas leis, nas uniões associativas dos governos, na nova tecnologia. Será porque o milénio começa que há tanta mudança, ou calhou que, na altura do milénio, mudanças históricas estavam a acontecer? Pelo menos no elo para o qual virei o olhar do leitor, a família. Elo que mais nos interessa por causa de ser base da interacção de pessoas que reproduzem, transferem, duma geração a outra, a forma de viver.

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5. Família, senhor leitor, para debater com crianças. Para debater, penso eu, em três realidades. Em três formas. Em três maneiras de viver entre nós: a que denominamos alargada, a que denominamos nuclear, e a que denominamos, com muita polémica, união de facto. Formas etnocêntricas. Formas organizadas por nós, através do tempo Entre nós, os que nos identificamos com uma ideia central: sermos europeus e milenários. Com códigos religiosos e civis para organizar os nossos afectos ao longo desses milénios.

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7. Não queria voar para outros sítios, embora fique tentado. O senhor leitor já tem vivido e pensado qual a melhor forma do convívio social entre nós. Respeitemos isso. De certeza, já observou que há esses três ditos modelos de família que coexistem: a alargada, a nuclear e a de facto. No nosso mundo. Porque em formas sociais alheias, noutras realidades sociais, há uniões nas quais um homem tem várias mulheres, como entre os muçulmanos; uma mulher vários homens, como entre budistas do Nepal; ou há relações nas quais existem um membro central, normalmente um homem, que tem várias mulheres e vários homens acumulados ao longo da vida, como entre os animistas Picunche que tenho estudado na América Latina, ou os Fulani da Guiné ou os Lo-Daagaba da Ghana ou os Baruya da Nova Guiné.

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9. Acasalamento de pessoas acumuladas? Povos selvagens? Nem por isso. Apenas povos diferentes de nós, povo o nosso de cultura normativa cristã para ateus ou crentes. Cultura que manda uma união de cada vez e proíbe andar formalmente com muitos ao mesmo tempo. Porém, a triste doença da Sida foi denominada a doença dos macacos, dos africanos, dos gay. Uma doença que, por causa de falta de explicação modelar, era atribuída a grupos submetidos ou a grupos afastados da moral conveniente. Hoje, ao sabermos que a Sida é fruto do adultério - é dizer, do nosso comportamento -, e que passou da genética animal à humana, já falamos mais a sério. Porque sermos cristãos não pode significar sermos selvagens.

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11. Porém, a Sida é um problema a ser considerado, é nosso. Resulta da amalgama de relações proibidas pela nossa forma de pensar e sentir, pelo menos, oficialmente: essa forma que manda ter uma pessoa por vez e para sempre. Denominamos esta forma, monogamia heterossexual. E defendemo-la com processos denominados pecado e delito, e proibindo comportamentos criados como o incesto, o adultério, a pedofilia, amancebamento, e em certas regiões da nossa cultura, a homossexualidade e a masturbação. Comportamentos mandados que levam a pensar e sentir oficialmente em público, agir no canto do social, à noite, essa outras formas de relações anteriormente referidas. Para não sermos selvagens ensinamos às nossas crianças os processos mais convenientes: acasalamentos com pessoas de fora de casa, do outro sexo, de condição adequada, uma relação ritualmente organizada e estruturada por contrato. Eis como a lição está toda feita para a criança.

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14. O milénio que começa. Segundo Movimento: Allegretto.

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16. O milénio que começa, exibe, perante nós, as já descritas formas de união. Os já descritos processos de bem e de mal. Lições aprendidas entre adultos para ensinar crianças. Processos que já mudam. Que estão a mudar. Já não há apenas as nossas três formas públicas de acasalamento permitidas, defendidas com as formas proibidas. Começa a existir uma predominância da terceira forma, a união de facto. A forma de se unir sem contrato. Até ao ponto da lei precisar de substituir relações contratuais pessoais, por uma forma contratual universal: a Lei, ela própria, que define a vontade das pessoas. Todos os que passam a reproduzir a vida sem ritual, a lei define ser uma união que, provada a convivência, dá direitos de acasalamento: segurança social, herança, nome dos filhos, inexistência de crianças bastardas, pensões de viuvez, paternidade de descendentes de seres do mesmo sexo, como em países mais abertos aos objectivos sexuais.. Uniões a serem definidas como iguais às relações publicamente oficiais.

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18. A família extensa tem permitido organizar uma empresa baseada no afectivo, dentro da qual há apoio solidário. Há um patriarca de provado comportamento ético, denominado avô, e uma matriarca a apoiar as decisões do homem que manda. Uma família extensa patriarcal, denominada machista, com mulheres espalhadas dentro da mesma, sem direito a falar, só a obedecer e em silêncio. Apesar de parecer já não existir este tipo de união, da minha observação e dos dados de vários colegas, depreendesse existirem dentro de certos estatutos de grupos sociais: aristocracia e proletariado; estrangeiros, exilados, emigrantes e outros a viverem fora da sua terra. Ou àqueles que por possuírem muitos bens, lhes é conveniente a união endogámica - desculpe senhor leitor, é um palavrão dum pequeno grupo de seres que assim definem as uniões dentro da família consanguínea, como conveniência a manter bens dentro da mesma. Em Portugal, para criar o morgadio. Na Galiza, o patruciado. Noutros sítios da Europa e das antigas colónias a adoptarem o modelo europeu, para criar o herdeiro único. Famílias empresas a dividirem entre elas os trabalhos do social. Procurando a vantagem pela manipulação de seres humanos entre profissões, sítios de trabalho, lugares políticos, sitiais eclesiásticos ou hierarquias armadas entre os homens de guerra.

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20. Guerra que vários sentem existir dentro dessa família extensa ou alargada e vão afastando a sua relação até ficar feito um núcleo, um pequeno grupo de pai, mãe, filhos, eventualmente, netos. Diminui a sua capacidade de atingir o leque alargado de tarefas no meio social, saberes não partilhados entre parentes capazes de saber qual canto social é melhor para investir, qual a profissão que pode acompanhar a emotividade dos vários que se sentam à mesma mesa. Enfim, tarefas heterogéneas incutidas de forma especializada entre os poucos a morar sob o mesmo tecto. Deveres demandados de forma dramática pela obrigação de realizar tarefas domésticas variadas, a seguir o trabalho dum dia extenso, sobre os ombros desse recatado número de membros. Que procura relações fora do grupo consanguíneo.

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22. Porque a guerra da qual saíram, era a intromissão dos adultos patriarcais nos assuntos do novo grupo que começava a procriar, a se reproduzir sem querer aceitar as experiências de gerações passadas, dum outro contexto político, económico e social. Como o caso da Península Ibérica, a viver Monarquia, República, Ditadura, Estado Moderno, dentro de curtos anos do acabado século. Família nuclear que vê fugir os descendentes mal começa a possibilidade do trabalho, da profissão, para ter a capacidade de formar um lar próprio. Um lar que, ainda mais pequeno, incrementa as tarefas domésticas que cansam, e diminui as possibilidades de colaborar na divisão do trabalho social, como era na família alargada.

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24. E começa andar o acasalamento celibatário: eu na minha casa; tu, na tua; e juntos, só para nos divertirmos. Com tendência a procurar parceiros alternativos no interlúdio das zangas. Zangas esvaídas nos afazeres de tanta pessoa na família alargada, de tanto trabalho na família nuclear. Daí surge a experiência do amor sem compromisso formal. Esse compromisso que fez cultivar o amor em cumpridas horas de entender o outro, ou em namoros distantes que permitam o espaço individual. O amor de facto na união de facto.

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26. 3. União de facto. Terceiro movimento: moderatto.

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28. Não é falta de compromisso. Não é falta de amor. Pela negativa começar? Será útil definir às crianças, ideias pela negativa? É o cultivo da afectividade que permite manter a relação de forma prolongada. Com a emotividade como base para sustentar dois seres humanos durante o tempo que a paixão existe e o carinho se desenvolve ; ou, talvez seja melhor dizer, é desenvolvido. A união de facto tem um trabalho: a compreensão da realidade do outro, da consciência da sociedade dentro da qual o outro existe. Ternura pela luta que esse outro empreende na sua sobrevivência e no cumprimento dos seus objectivos. Entendimento do objectivo, que facilita o diálogo. Diálogo que faz possível o interesse na outra pessoa. Trabalho dos diabos! Manancial de troca, hidromel de doçura, igualdade desenvolvida entre dois a lutar pela autónoma reprodução. Trabalho não facilitado pela existência de mais pessoas, a distrair a intimidade de dois seres autónomos, a desenvolverem carinho.

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30. Até que, aparece a criançada. Até que um rebento faz pensar se é ou não conveniente morar eu na minha casa, tu na tua casa. Há uma entidade nova para cuidar. Para amar. Para ensinar. Para reproduzir. A época de brincar à paixão e aos divertimentos nocturnos ou às viagens, parece desaparecer. Nasce uma divisão do trabalho entre quem toma conta da criança e quem traz o dinheiro preciso para viver, conforme a elegância e o conforto que o viver na base só do compromisso de se amar e desejar, desenvolveu entre esses dois. Não há contrato. O contrato é a já a referida Lei do Estado. Há comprometimento entre os que começam uma nova vida.

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32. Nova vida que faz mudar a interacção social. A distância com os ancestrais e os outros parentes, parece ser substituída por outros que vivem igual. Nova vida que faz abrir os olhos à experiência da emotividade. O novo acasalamento dinamiza os afectos, dinamiza o interesse pelo outro. Dinamiza, enfim, a paternidade e a maternidade que passam a ser compartilhadas em tudo o que as emoções, que controlam a racionalidade, permitem.

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34. Por outras palavras. Parece que a união de facto faz dar uma reviravolta ao entendimento social: aí onde as formas cartesianas começaram a mandar no Séc. XVII e a fechar os sentimentos que orientavam as uniões, no Século XXI muda para legalizar as palavras paixão, carinho, paternidade, entendimento, compartilhar, entender o outro, dinamizar os objectivos próprios, limitado pelos necessários objectivos do parceiro.

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37. Coda final

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Porém, já não sou o que era, mas talvez torne a ser, é uma hipótese a ser colocada perante as pessoas que começam a amar e a definir a nova forma social, como sempre tem acontecido na história da vida. Porém, as famílias são ainda, núcleos de seres a viverem separados e a encontrarem-se apenas nos momentos rituais, ou mesmo por casualidade.

É o desenvolvimento da individualidade que permite a existência de apenas uma união de cada vez. Porque há a segurança de poder transitar a um novo amor, quando paixão, carinho, paternidade, acabam com o crescimento e saída dos descendentes. Que torna a deixar isolado o ser humano. Sem avós, pais o parentes que fiquem em casa e acompanhem a velhice. Porém, a vida hoje, é preciso dizer às crianças, repete-se dentro da cronologia do tempo do ser humano. Cronologia longa, cheia de diversas idades e trabalhos adequados à idade que se tenha. Cronologia longa, obtida através dos cuidados da genética e dos cuidados do corpo. Esse corpo que não abusa de drogas nem doenças, assim como sabe combinar trabalho e distracção. Alegria e tristeza. Os dois companheiros da vida. Vida longa e heterogénea que as crianças do novo século, para entender, precisam de ver, ou ouvir, ou, finalmente, viver.

Deixo em paz ao leitor. Ando a transferir as minhas preocupações de como ensinar as crianças no meio duma estrutura social de leque heterogéneo. Na qual predomina o que eu sempre denominei uniões de amor, transitórias ou duradouras, sem interessar nem género sexual, nem proximidade familiar. Essa que começa a nascer, como tantas outras dinâmicas da vida, no Norte da Europa e a espalhar-se pelo resto do mundo. Como era até o Século XVII. Eis porque esse é o meu título: Já não sou o que era, mas talvez torne a ser. Como a História demonstra ser, heterogénea, de ida e volta, de manipulações, de estratégias, porque somos nós os que a fabricamos, somos nós a fazer essa História.

Bom milénio a todos, procurando como ensinar estas manipulações que a cronologia do tempo cria na mente humana. Para depois a codificar ou em rituais, ou em contratos individuais ou colectivos. E tornar a começar a manipulação da mudança. Já não sou o que era, mas talvez torne a ser..

Raúl Iturra
Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa (ISCTE)/Lisboa

Bibliografia.

Entre outros textos, enquanto escrevia pensei nos seguintes:

  • Araújo, Henrique Gomes de, 1998: Ética, economia e educação. Ensaios sobre o vinho do Porto, Fundação António de Almeida, Porto
  • (et.al), 1998: Nós e os outros: a exclusão social em Portugal e na Europa, SPAE, Porto
  • Raúl Iturra, Diário de Campo 1988-1999
  • 1999: "Menino, faça um cavalheiro" in Brincadeiras da minha meninice, Associação de Jogos Tradicionais da Guarda, Guarda.
  • "A tradição oral e o imaginário das crianças" in A criança e a tradição oral, Associação de Educadores da Infância, Guarda.
  • Desejo-te porque te amo. O heterogéneo saber sexual das crianças, Afrontamento e Associações da Cidade da Guarda (no prelo)
  • Schubert, Franz, 1823-24: Sonate fur Arpeggione und Klavier, versão de Misha Maisky.
  • Souta, Luís, 1997: Multiculturalidade e Educação, Profedições, Porto
  • Torres, Anália Cardoso, 1996: Divórcio em Portugal. Ditos e Interditos, Celta, Oeiras.
  • Vieira, Ricardo, 1999: Histórias de vida e identidades. Professores e interculturalidade, Afrontamento, Porto

  
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Edição:

N.º 87
Ano 8, Janeiro 2000

Autoria:

Raúl Iturra
Instituto Superior das Ciências do Trabalho e da Empresa, Lisboa
Raúl Iturra
Instituto Superior das Ciências do Trabalho e da Empresa, Lisboa

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