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Júlia Roberts e a Filosofia (no Final do Século XX)

Os historiadores da filosofia gostam de dividir o pensamento em épocas, nomeando-as de acordo com o que teria sido os interesses dos filósofos em cada uma delas. Assim, o séculos XVII e XVIII teriam sido a "época da Razão", porque os filósofos se dedicaram a observar, seguir e recomendar o que seria o "comportamento racional", então tomado como comportamento natural e o único verdadeiramente humano. O século XIX teria sido a "época da História", os filósofos avisavam que o "comportamento racional" tinha uma contrapartida, ele era também um comportamento que estava sob o tempo e, por conta disso, teríamos limites extra racionais ou super racionais comandando nossa razão ("extra racionais" ou "super racionais" conforme o filósofo pudesse casar ou não, em seu sistema, a razão com a história). E o nosso século, o XX, este século que agora acaba? Que nome deveríamos lhe dar?
Se pensamos que podemos dar um nome para este século contra a vontade dos historiadores da filosofia nos enganamos. A maioria deles já definiu sua característica principal: este século e talvez uma boa parte do próximo ganha, por enquanto, o nome de "a época da linguagem". Os filósofos estariam, ainda, preocupados com o comportamento em geral, e em especial com o comportamento do bípede sem penas ? e o comportamento do bípede sem penas mais interessante e talvez o que dissesse mais coisas dele mesmo seria o comportamento lingüístico, a linguagem ou as linguagens. Afinal, como poderíamos saber algo sobre o que nos cerca senão pela linguagem? Ou nos informamos pela linguagem do outro ou nos informamos sobre o que nos cerca pela nossa própria linguagem.
Neste século, então, os filósofos não abandonaram a história ou a razão, mas teriam entendido que ambos eram coisas melhor vistas se puséssemos tanto nossos microscópios como nossos telescópios virados para a linguagem. Isso, para muitos, se chamou de linguistic turn ? a "virada lingüística" da filosofia no século XX.
Fazendo assim, os filósofos não estiveram à frente dos outros intelectuais ou das outras pessoas. Muitas mulheres e homens, neste século, se voltaram para a linguagem. Eu agora percebo que quando eu era um garoto de ginásio eu me encantei com um tipo de história em quadrinhos que meu pai não conhecera quando garoto ? as histórias em quadrinhos que usavam e abusavam da metalinguagem. Meu pai conheceu o começo dos Comic Books no Brasil, o nosso "gibi", mas ele não ficou maravilhado como eu fiquei quando desenhistas e roteiristas estrangeiros, e também brasileiros, começaram a fazer experiências com a linguagem e, no meio disso, a trabalhar cada vez mais com a metalinguagem (ele viu a adoção crescente da metalinguagem, mas ele não percebia a revolução que ela trazia). Eu ficava embevecido com a metalinguagem, ou seja, com uma linguagem que falava da linguagem, com algum personagem que tinha o poder de conversar conosco sobre seu próprio desempenho ou conversar com o desenhista e seu criador sobre seu destino e, mais ainda, criar uma linguagem especial para contar para sei lá quem algo sobre nós, eu, o leitor, e ele, o personagem ? algo que tínhamos em . . . comum! Na verdade, hoje eu entendo, o que me deixava maluco (essa palavra é boa aqui) é que o uso da metalinguagem era o modo pelo qual ficção e realidade se fundiam. Para o meu pai, ficção e realidade não se fundiam, e a metalinguagem não era um fenômeno, apenas uma técnica a mais.
Hoje em dia a metalinguagem é quase uma regra do meio artístico. Que ficção e realidade ganharam outros limites entre si, que não são mais os dos nossos pais, sabemos bem. Todas as tardes ou noites que posso ver Julia Roberts ela está metida em algo mais ou menos assim: alguma transa metalinguística capaz de conduzir um enredo sobre o qual não podemos dizer se ele expressa ficção ou realidade da mesma maneira que nossos pais saberiam dizer com certeza. Por esses dias fui ver ela fugir de um casamento marcado com Richard Gere ("Noiva em fuga"), mas gostei mais de um outro, que penso que fez menos sucesso; um filme em que ela não fugiu e nem ficou sozinha ou com o amigo gay ("O casamento do meu melhor amigo"). No filme de que falo (e que agora esqueci o nome) ela é uma grande estrela, e a penúltima cena é ela se casando e a última é a amostra da felicidade e tranqüilidade dela na vida a dois. O parceiro, e no final marido, é o Hugh Grant. Ora, o filme pode ser visto metalinguisticamente, em um sentido específico. Julia Roberts faz o papel de uma atriz cada vez mais famosa que se apaixona por um livreiro simples. O enredo gira em torno das possibilidades da vida íntima (e feliz) poder ou não ligar-se à vida pública (e infeliz). O tema, moderno até o último fio de cabelo, poderia ficar por aí, não dando chance a mais nada que já não tivesse sido feito. Mas a metalinguagem, introduzida ora mais ora menos explicitamente, muda o percurso do filme dando-lhe uma consistência inesperada por mim.
Em um momento do filme Julia Roberts é descoberta pela imprensa na casa do livreiro, justamente em um dia em que ela havia praticamente se refugiado ali, procurando um ombro particular e amigo. Ela havia se refugiado porque aquele era um dia em que os jornais haviam publicado fotos (mais ou menos pornô) que ela havia feito quando ainda pobre e sem fama. É nesse clima que Hugh Grant tem sua grande chance como Hugh Grant. Ele diz para ela: "não ligue prá isso, amanhã todos os jornais serão só papéis, papéis que estarão embrulhando alguma coisa". Não dá prá não ouvir Grant de outra maneira senão dizendo, na vida real: "olha, comigo aconteceu a mesma coisa, me pegaram com a Divine Brown, eu amarguei aquilo, mas veja como agora, neste filme aqui, eu posso voltar e conseguir fazer o mesmo papel de antes, de um moço inglês ingênuo e tímido". Isso é puro ? e banal ? uso da metalinguagem já como regra cinematográfica e como consagração de um novo e ainda não claro deslocamento de limites entre ficção e realidade.
Este é o ponto exato no qual a filosofia está e no qual ela termina o século. Ela é filosofia da linguagem, é certo, mas não da linguagem enquanto reduto da realidade última, como foi nos primeiros dias da linguistic turn, mas exatamente da linguagem como um affair entre metalinguagem e linguagem e entre ficção e realidade. E em um affair, ninguém sabe se o final será feliz. É assim que Putnam, Davidson, Rorty, Derrida e mesmo Habermas vão deixar este século para entrar no XXI, daqui a alguns meses, juntos com Julia Roberts e seus parceiros.

Paulo Ghiraldelli Jr.
Universidade Estadual Paulista / Marília, São Paulo
paulo@sunline.com.br
http://www.filosofia.pro.br


  
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Edição:

N.º 87
Ano 8, Janeiro 2000

Autoria:

Paulo Ghiraldelli Jr.
Universidade Estadual Paulista, Brasil
Paulo Ghiraldelli Jr.
Universidade Estadual Paulista, Brasil

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