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Riquezas Culturais

Quanto mais pessoas e mais formas de viver conheço mais percebo que ainda tenho muito para ver e para fazer. Mesmo assim, durante os últimos tempos enriqueci o meu conhecimento do mundo graças ao contacto com pessoas das mais diferentes culturas. Um dos hábitos comum a milhões de pessoas que me era estranho até há uns anos atrás começa agora a ser banal no meu quotidiano, porque alguns dos meus amigos o têm: comer com as mãos. Não falo de frango nem de marisco. Falo de comer refeições indianas onde a base é o arroz e onde os molhos são o fundamental.
Pensava que era uma pessoa disposta a experimentar, para poder optar. Foi assim que fui educada. Em miúda, experimentei vários desportos e vários instrumentos musicais mas não me apaixonei por nenhum. Pelo menos, deram-me a oportunidade. Noutra fase da vida, confronto-me, então, com outros hábitos e outras formas de vida. Tenho que confessar que nem sempre consigo seguir a técnica de experimentar para escolher. No caso, sou já incapaz de trocar o hábito de comer a sopa com colher e o prato principal com o garfo na mão esquerda e a faca na mão direita. Nem os pauzinhos chineses me convencem, mas este é um caso óbvio de falta de jeito.
Há bem pouco tempo desapontei os meus amigos indianos quando me recusei a experimentar comer um caril de frango com as mãos. Explicavam-me como devia fazer para não dar uma impressão rude. Para eles, há maneiras e maneiras de comer com as mãos. Para mim, comer arroz com as mãos é comer arroz com as mãos. A minha incapacidade não tem, obviamente, a ver com falta de habilidade, como acontece no caso dos pauzinhos. Se experimentasse comer com as mãos, concerteza que conseguia levar a comida à boca. Mas, por ter crescido na cultura em que cresci, sempre achei que não se comia com as mãos. Por isso mesmo, nem sequer consigo experimentar. Por isso mesmo, não consigo perceber como é que se come com as mãos sem ser rude.
É tudo uma questão de culturas e do esforço que se faz para se ser culturalmente versátil. Os pais dos meus amigos acham muito estranho eu comer tudo com garfo e faca. E eu não consigo acreditar que o arroz com os mais variados molhos à base de especiarias saiba melhor se for enrolado com as mãos e levado à boca num gesto impensável dentro de uma etiqueta de boas maneiras como nós, europeus, a conhecemos. Mas não somos só nós. Os meus amigos indianos contam sempre a história de uma jovem de origem chinesa que, quando pela primeira vez tentou comer com as mãos, não acertou na boca... Eu nem quis correr riscos. Há coisas que não se conseguem fazer se não forem vistas como normais desde sempre. Nem que seja a única pessoa na mesa a comer de faca e garfo, acho que nunca conseguirei abandonar os fiéis amigos de metal.
Com tantos assuntos sérios para debater na passagem para o anos 2000, até pode parecer impossível que eu esteja aqui a delirar sobre os meus problemas com as formas como as pessoas comem. Mas estas são experiências de vida que gosto de partilhar. E para dar um exemplo que contrasta com a minha resistência, sirvo-me dos meus amigos de origem indiana, chinesa e árabe que, depois de conhecerem portugueses e depois de visitarem Portugal, nos cumprimentam com dois beijos na cara, num claro sinal de abertura à nossa cultura. Nunca dei a entender que faço questão de cumprimentar todos os meus amigos assim, sejam eles portugueses ou não. Curiosamente, foram eles que começaram a cumprimentar-me com dois beijos e eu gostei desta aproximação de culturas. Lamento não ser capaz de retribuir, no que diz respeito a fazer um esforço para comer com as mãos...
Mas tenho que admitir que há um hábito que eles têm que eu não tenho e que me agrada em particular: em casa, não se anda calçado. Em climas quentes, isto significa que se anda descalço. Em climas frios ou moderados, isto terá que significar uns chinelos os umas meias. Este é um hábito que estou disposta a introduzir no meu dia-a-dia. Quem for a minha casa terá que deixar os sapatos (e, sobretudo, as botas de Inverno) na casa-de-banho. Faz parte dos meus planos a compra de alguns pares de chinelos baratos para que todos os convidados se sintam confortáveis. Nesta adaptação de culturas, não pretendo que a minha casa seja um local sagrado. Espero que isto esteja claro. Não será nunca por uma questão de religião que o farei. Faço-o por reconhecer que o meu chão e os meus tapetes estarão sempre mais limpos...
As variadas culturas estão aí para todos vermos e experimentarmos, se assim o entendermos. Fazê-lo pode ser uma prova de abertura ou até de amizade. Adaptar hábitos de outras culturas à nossa realidade é uma consequência da globalização, como noutros tempos foi uma consequência de outros acontecimentos. Há quem veja isto com um sinal de desgraça, que se traduzirá na desvirtuação de cada identidade cultural. Eu vejo isto como um sinal de evolução, que se traduz numa pluralidade de riquezas. Mesmo sem adoptar todos os hábitos de outras culturas, sinto-me feliz por saber que eles existem.

Hália Costa Santos
Universidade de Leicester /UK


  
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Edição:

N.º 87
Ano 8, Janeiro 2000

Autoria:

Hália Costa Santos
Jornalista
Hália Costa Santos
Jornalista

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