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O "bug"

A história

A história passa-se no tempo em que um milénio ainda durava mil anos. Daí que a sua aproximação à realidade seja apenas coincidência.
Por Dezembro e à mistura com cartões de Boas Festas, chegou à escola um envelope cinzento. Os professores não lhe deram qualquer importância, tão empenhados andavam na preparação da Festa de Natal da Escola e nas corridas aos centros comerciais. Depois, foi a pressa das reuniões e o ritual do preenchimento das fichas de informação aos pais. E o envelope repousou durante quase um mês no canto do armário da correspondência, aconchegado num monte de circulares.
Por Janeiro, um professor mais atento e ocupado em exercícios de arqueologia epistolar, apercebeu-se da presença do envelope cinzento. Inteirado do assunto e algo preocupado, apressou-se a informar os colegas de que iria ser realizada uma aferição em Português e Matemática.
Foram muitos os notificados e poucos os que se dispuseram a indagar do conteúdo dos ditos. Perante o elenco de objectivos das três brochuras que o D.E.B. tinha enviado às escolas, alguns professores reclamavam que aquilo "não estava no programa", tomando súbita consciência de que havia um outro "programa" que diferia substancialmente do "programa" que se afadigavam em "dar" pelo manual. Outros, menos dados a leituras, manifestavam perplexidade com a azáfama dos colegas e perguntavam "o que era o "D.E.B." e se a coisa tinha alguma serventia". E por aí se quedavam, pois já tinham passado por eles muitos anos de "reformas" sem que as suas sagradas rotinas tivessem sido afectadas. Estes eram os mais felizes.
Mas algo de muito estranho se passava. Na binária rotina aula-teste instalara-se uma espécie de "bug" que perturbava a pacatez habitual. Na primária, os pais dos alunos perguntavam se os exames da quarta classe tinham regressado. No ciclo, os professores intensificavam o apelo a explicações suplementares. E já toda a gente procurava no baú das antiguidades os livros de fichas sem a etiqueta indiciadora de "manual de acordo com os novos programas". Mal a aula começava, os putos mergulhavam no "Livro de fichas de Português e Matemática", num treino apenas interrompido para fazer chichi ou comer o lanche.
Imaginemos que tudo isto não passou de um pesadelo ou de malévola efabulação...

A moral da história

Subitamente, damo-nos conta de que são já cumpridos dez anos sobre a publicação do Decreto-Lei 286/89. Foi tempo suficiente para que mais um nado-morto da actividade legislativa caísse no esquecimento. Mas eis que o seu descendente dilecto, o Despacho Normativo 98-A/92 ressuscitou.
Entre as quatro medidas imediatas de política educativa do novo Governo avulta a concretização da avaliação aferida. O último ano do segundo milénio da era cristã assistirá ao incremento da auto-regulação do sistema, derradeiro desiderato do despacho.
Age-se como se as restantes três funções estivessem cumpridas no espírito e na letra do normativo. Mas onde pára a avaliação formativa, efectivamente contínua e sistemática? Como é possível concretizar nas escolas uma avaliação sumativa na ausência de dados da avaliação formativa? E porque se insiste em transformar notas de testes atribuídas na lógica de escala intervalar em classificações de pauta de escala ordinal? Por ingenuidade? Por ignorância da ciência estatística? Por desconhecimento dos normativos?
Não será difícil prever que o resultado mais expressivo da avaliação aferida consistirá na verificação de que as prescrições de há dez e de há sete anos foram "letra morta". Apesar da bondade dos legisladores e contra as expectativas de uma incansável Comissão de Reforma do Sistema Educativo, a reforma nunca existiu. Os professores encarregaram-se de a reformar.
Sete anos volvidos sobre a publicação do despacho, mantém-se o predomínio da avaliação selectiva, a tendência generalizada para compromissos com a lógica do ano de escolaridade (em prejuízo de uma avaliação que se pretendia contínua e sistemática), a segmentação dos momentos de avaliação em tempos simultâneos e com instrumentos iguais para todos os alunos.
Com ou sem despacho, a avaliação pode cumprir objectivos de desenvolvimento que ultrapassam o da mera verificação do rendimento académico, não alienando a sua dimensão formativa e traduzindo-se em benefício efectivo para o aluno. Urge devolver à avaliação um papel de auto-regulação a par com o da harmonização dos ritmos de desenvolvimento (escolar e pessoal) de todos e de cada um e entender os momentos de avaliação como oportunidades de aprendizagem.
Resta apelar ao bom-senso dos professores e esperar que no decurso do próximo milénio (isto é, em 2001) já se possa fazer incidir a avaliação aferida, por exemplo, na Expressão Dramática ou na Educação Cívica.
Assim seja.

José Pacheco
Escola da Ponte/Vila das Aves


  
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Edição:

N.º 87
Ano 8, Janeiro 2000

Autoria:

José Pacheco
Escola da Ponte, Vila das Aves
José Pacheco
Escola da Ponte, Vila das Aves

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