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Uma Prenda para o Nono A

Como escrevo na quadra do Natal, acho que posso contar uma história que ofereço como prenda ao 9º A, embora pareça uma prenda, à primeira vista, um tanto estranha.
O 9º A atingiu a notoriedade pelos piores motivos. Ao contrário do que seria de esperar há três ou quatro anos atrás, quando as primeiras letras do alfabeto estavam destinados às turmas dos melhores alunos, este nono A de que vos falo é constituído por alunos de quem, eufemisticamente, se diz serem problemáticos. Oriundos, maioritariamente, daquelas camadas da população a quem a extensão da escolaridade "obriga" a vir à escola e, provavelmente por uma daquelas medidas a que em tempos se chamava de "pedagogia compensatória", mereceram figurar à cabeça do alfabeto logo a partir do 7º ano, vendo-se, assim, envolvidos numa pequena revolução de nomenclatura da qual se esperava os melhores frutos.
Esperanças completamente baldadas. Os alunos não mereceram em nada a posição cimeira, alfabeticamente falando, que lhes foi atribuída e a prova está à vista. Apenas decorrido o primeiro período, em plena época do Natal, quando a generosidade escorre de cada ser humano e das ruas e das praças e até das próprias escolas se expande música celestial que toca os corações mais empedernidos, os alunos revelaram um péssimo comportamento, absoluto desinteresse pelos estudos e uma total incapacidade para absorver o mínimo dos conhecimentos das disciplinas ministradas. Para além disso, manifestaram uma sistemática propensão para a rebeldia, para a indisciplina, para a balda colectiva. O resultado consta das respectivas pautas, onde o panorama é desolador e, como tudo leva a crer, constará igualmente das fichas de avaliação individual, onde os termos usados pelos professores não andarão muito longe daqueles que figuram neste texto.
O mínimo que se pode dizer é que a escola foi completamente iludida na sua boa-fé. Julgando tratar-se de alunos recuperáveis, feitos da mesma massa de que são feitos todos os alunos, afinal foi confrontada com um grupo de adolescentes, que até já tinham histórias anteriores pouco exemplares, umas vezes por causa de más companhias, outras por serem originários dos chamados meios difíceis, outras, simplesmente por não disporem dum mínimo de bases, vá-se lá saber porquê.
Ora, a verdade é que a escola não pode lidar senão com alunos, do mesmo modo que os professores só se podem reconhecer como professores, enquanto puderem reconhecer-se nos seus alunos. E cada um segundo a sua disciplina, o que quer dizer que de cada aluno se espera que componha o seU ramalhete de disciplinas, desde o Português à Matemática, às Línguas estrangeiras, as Ciências da Natureza, à Educação Visual e Tecnológica e por aí fora, sem esquecer a Disciplina das disciplinas, sem a qual nenhuma disciplina é possível: o bom comportamento, o interesse, o esforço, o entusiasmo, a participação e, claro, a autonomia pessoal e social.
Como é possível tudo isto a partir de grupelhos de adolescentes, ainda por cima mal encaminhados?
Bem avisado anda o Ministério, quando pensa em programas maciços de formação para pais e encarregados de educação como uma verdadeira rectaguarda de apoio à formação dos filhos para desenvolver neles a sua vocação de alunos... Essa, sim, parece ser uma medida decisiva para apoiar a revolução do alfabeto escolar como forma de inverter a ordem da adolescência numa verdadeira ordem alunizante. Entretanto, enquanto isso não acontecer, o 9º A tentará ser o 10º A, cada vez mais reduzido, depois o 11º A, drasticamente menor, finalmente, o 12º A se, ainda, subsistir algum...
Os outros irão ficando por aí. Talvez encontremos alguns deles como arrumadores, por exemplo, tentando sobreviver do trânsito caótico da cidade. "Terão o que merecem", parece ser a sentença mais segura.
Afinal, não lhes foram dadas todas as oportunidades, inclusive a de figurarem na revolução da ordem de distribuição do alfabeto escolar?

Manuel Matos
Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade do Porto


  
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Edição:

N.º 87
Ano 8, Janeiro 2000

Autoria:

Manuel Matos
FPCE, Univ. do Porto
Manuel Matos
FPCE, Univ. do Porto

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