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A Propósito das Novas Competências

O discurso das competências tornou-se hoje um lugar comum que tende a invadir não apenas o campo da actividade profissional, como o campo da formação, como, ainda e mais recentemente o da Escola. Este polimorfismo, a que o termo vem sendo sujeito, corresponde a um conjunto de transformações sociais e profissionais de cuja estruturação cognitiva faz parte a própria transformação semântica do conceito de competências. Isto é, os vários sentidos que, no discurso, vêm sendo atribuídos à ideia de competências não se destinam apenas a nomear as transformações, mas também a induzir cognitivamente a sua necessidade, a legitimá-las e a torná-las naturais no interior da nossa realidade quotidiana. Deste modo, mais que o estabelecimento de tais ou tais competências em si, o discurso visa criar disposições anímicas que se traduzam em quadros de referência para a acção, viabilizando as transformações em causa. Essa é a condição para que as transformações deixem de ser sofridas (e, eventualmente, bloqueadas) e passem a ser reconhecidas como necessárias e idealmente desejáveis.
Esta função do discurso ? a de criar disposições orientadas para a acção conveniente, que é aquela que se coaduna com o sentido dominante das transformações ? é especialmente reconhecível em domínios em que a acção não está previamente regulada por dispositivos técnicos ou jurídicos, cujo suporte possa ser atribuído a mediações científicas, como acontece quando a acção está sujeita a regras empiricamente controladas ou a normativos juridicamente sancionados. Na verdade, no caso em que a acção é intercondicionada pelos sujeitos e pelas situações, como é bem o do mundo da educação, não se pode esperar que a relação aí estabelecida seja regida por regras técnicas ou jurídicas, mormente num tempo como o de hoje, onde a distinção entre facto e direito tende a ser, permanentemente, corroída pela lógica implacável do acontecimento. Neste quadro, a acção não se pode reger segundo o princípio da aplicação de normas gerais a situações particulares. obedecendo ao desígnio da salvaguarda do universal contra o singular.
A alternativa não está, porém, explicitamente configurada, nem parece possível sê-lo, uma vez que a legitimidade para o fazer supõe um princípio transcendente que unifique e sintetize os interesses particulares, condição que está, directamente, em jogo a partir do momento em que o sistema educativo passou a legitimar-se pela figura da prestação de serviços, segundo uma estratégia pessoal de investimento. É precisamente para fazer face a esse défice de legitimação, que se traduz, igualmente, num défice de intervenção dos agentes educativos, que emerge o discurso das competências. Apelando para um domínio de saberes fluidos, eminentemente relacionais, cujo alcance se pretende medido pela eficácia, quando a eficácia é, justamente, o que menos se pode medir no domínio relacional, o discurso das competências instaura, todavia, no quadro cognitivo dos agentes educativos, uma relação de dependência responsabilizante que, paradoxalmente, se traduz em poderes acrescidos.
Sem jamais esgotar o domínio a que se aplica, visto que o exercício das competências não se define ao nível de conteúdos objectivos, mas ao nível de objectivos, cuja definição constitui o verdadeiro problema para o exercício das competências previstas, pode concluir-se que a actividade suposta no discurso das competências é mais a de criar o espírito de novas responsabilidades e novas dependências do que a de fomentar novos referentes para a acção. Pode sempre dizer-se que é vasto o campo da iniciativa local. Mas não é menos vasto o campo da produção de normativos centrais A actividade legiferante que se tem sentido nos últimos tempos atesta-o abundantemente.

Manuel Matos
Faculdade de Psicologia e Ciências
da Educação da Universidade do Porto


  
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Edição:

N.º 86
Ano 8, Dezembro 1999

Autoria:

Manuel Matos
FPCE, Univ. do Porto
Manuel Matos
FPCE, Univ. do Porto

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