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Crianças, os Senhores do Mundo Esmagam os Fracos...?

Para Inês Amores,
no seu primeiro dia de escola.

É com uma certa tristeza que vos digo isto. É com stress e melancolia. É a lamentar poder ser poderoso perante vós. É a pensar que é bem possível que eu seja um senhor do mundo em frente dos pequeninos. É a reparar que, por vezes, a vida nos leva a sítios sociais, a lugares sociais, a trabalhos, nos quais passamos a ser nós que mandamos. É com pesar, porque devemos optar e tomar decisões que pensamos são boas para os outros, e esses outros acabam por achar mal. Por causa de terem outra ideia. Meus filhos, é como ser pai ou mãe: mandar comer, dar um beijo depois, ouvir as questões que bem queríamos responder com palavras que fossem esclarecidas para vós. E nem conseguimos. Porque, com o tempo e a história, a passagem da vida, perdemos os sentimentos que vós, pequenos, aprendeis a ter. O tempo faz-nos adultos que pensam e sentem duma outra maneira da vossa. O vosso olhar está endereçado para nós, enquanto o nosso procura ver o que se passa no mundo, o que se passa na vida, no dinheiro que precisamos para continuar, nos amores que queremos para viver em paz, na companhia adulta necessária para trocar ideias, no espírito de nós próprios para sabermos ser autónomos e livres. Até repararmos que o não somos capazes de ser. Porque há senhores no mundo que mandam mais do que nós podemos mandar. E de forma diversa da maneira que queríamos sermos mandados, para ganhar. E nos enganamos, e desmerecemos, e andamos perdidos e transferimos essa perca para vós, uma passagem pouco justa a causa de vossa forma de entender o mundo, a causa das palavras que usamos: muitas das vezes, não explicamos e mandamos calar.
Bem queria dizer-vos como é que há pessoas diferentes no mundo. Que o mundo é pequeno. Que o mundo vive além das nossas paredes do lar. Que há guerras e essas guerras são lutas por interesses que, talvez, não saibas entender. Vou tentar contar essa história. Porque, nós, criadores de vós, só queríamos dar-vos ideias para saber como o mundo tem um patrão que manda sobre os pais. Ainda que esses pais nem queiram nem gostem. Mas acontece. E é assim. Acho eu.

1. Os senhores do mundo.

Repara como um dia, por causa do seu bom coração, a mãe do Capuchinho Vermelho lhe diz para levar comida a avó. E, no caminho, enquanto juntava flores para ornamentar o cesto da merenda, aparece à pequena um lobo. Bem sabes que os lobos com fome, comem crianças, ou adultos. E esta pequena ouve e vê um lobo escondido, e foge para casa da avó. Para se salvar. Na casa do adulto. Mas o lobo, esse que bem sabia o que queria, soube entrar e comer a pequena e a sua avó, com toda a comida do cesto. Foi assim que aconteceu com essas notícias que ouves. De Timor Lorosae. Era uma pequena ilha, tão pequena como o Capuchinho, cuidada e, às tantas, esmagada por senhores que lá tinham entrado, faz já muito tempo, centos de anos, mais anos dos que tem a tua avó. Imagina só. Mas, a pouco e pouco, esse pequeno Capuchinho vai crescendo e aprende a fazer como os patrões que por aí tinham andado, e até são tratados com amizade, embora à distância, até a distância acabar. E, um dia, os patrões bulham, na sua casa, e devem ir embora. E largam a pequena ilha: como deixar o Capuchinho Vermelho andar só pelo mato dos lobos. Porque mal voltaram para sua casa, um lobo que tinha muito apetite aparece e engole-os. Como o lobo fez com o Capuchinho e a sua avó. E ninguém se lembra que é preciso correr para os ajudar. Nem era possível: os antigos patrões, agora amigos, tinham os seus próprios problemas e nem tempo ficava para assistir aos que tinham andado com eles.
Porém, meus pequenos, esse Capuchinho teve que empurrar e crescer e confrontar a pé nu, sem mais força do que a sua esperança, o lobo que aparecia. Um caçador aparece e ajuda. Como o caçador que viu o Capuchinho ser comido, e a sua avó. E desventra o lobo e retira as duas até ficarem outra vez no mundo. Esse caçador é o mesmo do Timor Lorosae e bate e resiste e forma outros na resistência. E grita e manda vozes e organiza todos os pequenos seres a sofrerem com a presença do lobo que caiu sobre eles. Mas este caçador só, não consegue empurrar para fora o lobo e vê como todos os pequeninos e pequeninas são sempre engolidos. Sabes porquê? Porque eles tinham gás, e tinham petróleo para fazer trabalhar as máquinas, porque eles próprios faziam filhos para trabalharem sem um tostão, sem serem pagos. O caçador pensa, cala, medita, escolhe a melhor maneira, e foge para os cerros para se defender e defender os seus. Esse caçador tinha por nome, Xanana. E Xanana, só por meditar, entendeu a necessidade de andar em pontas de pé a negociar com o lobo. Com calma. Sereno. A pensar na liberdade. Até escreve " O! Liberdade", um poema para fazer entender os seus amigos o que estava a acontecer na sua terra. Na sua cabana, nessa pequena ilha de Timor Lorosae. O lobo agarra o caçador, que se defende e é defendido. Os seus defensores vão pelo mundo falando, o caçador é fechado na cadeia, até ser liberado pelas vozes de milhões de pessoas que gritam e acordam os vizinhos para correr a tirar o caçador das suas correntes. E finalmente, o barulho é tão grande, que o caçador consegue trazer forças pesadas para o acompanharem, apenas pelo carinho e pelo horror que o mundo vê como é tratado o seu grupo. Esse grupo que queria ser livre e não era aceite na sua liberdade, pelo lobo que queria carne para engolir no trabalho do gás, da agricultura, da pesca.
A história é complexa, o meu filho. Mas é assim que o meu coração te pode explicar. De como um pequeno grupo de amigos, andou durante oito dias ou mais, até congregar o mundo todo para fazer capitular o lobo. E dar forças a um caçador que agora tem que dar oxigénio aos que estavam no ventre do lobo, comida, exercício, paz, felicidade. Trabalho que só agora está a começar. Xanana é um caçador que salva com o apoio dos poderosos do mundo.

2. Salvador perante os poderosos.

Não é só Xanana, por estes dias. Faz já tempos, que outro Xanana se meteu de cabeça na boca do lobo para retirar todos os Capuchinhos Vermelhos, Brancos, Pretos, todas as avós e os avôs que tinha engolido. E soube tirá-los bem. Um por um, esse caçador, com a licença dos seus vizinhos, pôs o mundo engolido na rua e ensinou-o andar outra vez. E andaram e andaram, construíram as suas casas, os seus trabalhos, como Xanana vai fazer, comeram pela primeira vez na sua vida e tiveram trocos nos bolsos para comprarem guloseimas e muita, muita comida. Que nunca tinham antes comido. E trabalharem as suas fábricas, o seu gás que era denominado cobre, e guardar os trocos que desse gás saía, para eles próprios. Pela dignidade nacional. Todos os vizinhos amigos do caçador, andaram com ele pelas ruas da vida, com dificuldade, mas com imenso entusiasmo. Chilravam à vida. Felizes e contentes. Parecia não haver lobo a aparecer. Parecia um lobo distante e amigo.
Mas, meu pequeno, o gás era muito importante, o mandar nos outros por dois tostões, muito barato. E não deixaram ao caçador Salvador, salvar os Capuchinhos libertos, não deixaram fazerem festas e abateram-se contra o caçador como nunca antes tinham feito nessa outra terra. Bem mais cumprida que a de Xanana. Desta vez, foi o caçador caçado. Um caçador que não se deixava caçar. Só que as suas forças eram muito fracas e, minha criança, o mundo vivia outra história. O caçador queria libertar e ninguém, nessa altura, ajudava. Só, de camisa arregaçada, de chapéu na cabeça, bem tentou defender os Capuchinhos. Bem tentaram os Capuchinhos defenderem o caçador. Mas, como na terra de Xanana, mataram-nos a todos sem eles poderem gritar. Havia muitos que trabalhavam e era preciso acabar com eles. Para poder continuar a meter no ventre do lobo Capuchinhos e mendigarem um sítio de trabalho. Como fizeram os de Timor, a mendigarem forças para apanhar o lobo. Os de Salvador, não conseguiram, os poderosos do mundo queriam engolir. Os de Xanana foram capazes, depois de muitos lutarem para serem ouvidos. Os de Salvador foram ouvidos, de forma dúbia, 26 anos depois. Os de Xanana foram ouvidos 25 anos depois. Ambos os dois, pelos poderosos do mundo. Para Salvador, muito tarde. Para Xanana, ainda a tempo.

3. Os poderosos do mundo.

Engolem, esmagam os fracos. Querem a sua vida calma e bem servida. Poderoso, pequenada, é o proprietário da comida, das boas casas, dos bons ordenados, das pinturas, da porcelana, dos saberes que mexem nas máquinas. Os poderosos do mundo são os que agem quando a sua calma pode ser arrebatada e serem desfeitos no seu prazer. Pequeno, os poderosos do mundo não conseguem serem irmãos: mandam com calma. Com tanta serenidade, que até parece que estão a sorrir.
Os poderosos do mundo mudam. Para Salvador, organizaram o caminho do mato até a sua morte, a dele e a dos seus amigos. Os poderosos do mundo ouvem o que é importante e, quando percebem que todos andam quilómetros e quilómetros em silêncio, ou aos gritos, com pranto nos olhos, com palavras de raiva, com energia, têm também medo e não abatem o caçador. Com calma, convencem o lobo a não matar mais Capuchinhos nem os seus Avós.
Os poderosos do mundo hoje em dia, são capazes de terem que calar para andarem em silêncio pelas vias que o povo traça de Embaixada em Embaixada. Com flores e velas. Com lágrimas silenciosas, com orações que comovem até aos que parecem menos acreditar nas mesmas. Porque todos esses gestos são palavras que fazem barulho que nós, adultos, chamamos solidários. E começamos a entender, e fazemos entender, que os poderosos do mundo não podem mandar mais esmagar caçadores, fracos seres que se batem pelos outros, sem que o mundo não se levante e diga a sua palavra. Palavra que faz convencer ao proprietário. E depõem e dizem adeus às armas. À sua própria autoridade, para ouvir a voz dos pequenos como tu, dos lutadores como nós, dos que não paramos por andar o poder à solta.
De Salvador a Xanana, entre esses dois caçadores, o mundo mudou. E não há lobo que tenha a teimosia de querer engolir. Sabe que do mato vem tudo o mundo a observar o que fazem e, sem necessidade de andarem a votar, viram as ideias a fazerem justiça, calma, tranquilidade e paz.
Desculpai, pequenos. Não sabia como vos dizer o que temos vivido nestes 26 anos, no Timor de Xanana, no Chile de Salvador. Nós, que temos vivido essa experiência, só sabemos dizê-la com palavras complexas. Mas, se tu pensas que há um homem a cuidar dos Capuchinhos engolidos, e que esse homem pode também sofrer às tantas, então vais entender. Porque a história do Capuchinho é igual ao dos poderosos do mundo que querem esmagar os fracos. No mundo, os fracos acabaram.
Fica certo disso. E toma o teu sítio de criança no mundo, para salvares outras crianças que, hoje, são seres como tu, a viver para sempre. Se tu, em pequeno, começas entender que a pequenada passou a ser o ser mais comovente do mundo. E que tanto Capuchinho de todas as cores, faz tremer aos poderosos.
Deixo-te. A palavra é tua e dos teus professores. Eles vão explicar-te o que nestes dias temos todos vivido. Para seres parte dos que pensam e dizem na rua, na escola, na família.
Um beijo solidário para ti, como Salvador e Xanana dar-te-iam, se pudessem falar assim contigo. Se tiverem o meio jornalístico, tão importante, que a escrita nos deu. Que me permite transmitir a alegria que sinto porque os poderosos do mundo nos ouviram. Quer no caso de Xanana, quer de Salvador. Vivam esse países a serem outra vez livres!
E, crianças, agradeçam a este jornal que vai dar aos vossos professores ideias para vos explicar, com palavras de pequenos, o que nem foi possível dizer nestes apressados dias que todos vivemos. Agradece, são boas maneiras. O Capuchinho vai ficar feliz e o caçador, ainda mais contente e os Avós e as Avós, até com comida?..essa guloseima perdida durante 26 anos?.E nós adultos, sem tristeza nem stress. Porque, criança pequena, descobrimos a democracia, essa que sonhou a Enciclopédia, faz 400 anos, a democracia sem voto, por debate. Eis que acaba o texto este escritor, pronto e desejoso de trabalhar os dias da Enciclopédia?.

Raúl Iturra
Instituto Superior de Ciências
do Trabalho e da Empresa (ISCTE) / Lisboa


  
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Edição:

N.º 84
Ano 8, Outubro 1999

Autoria:

Raúl Iturra
Instituto Superior das Ciências do Trabalho e da Empresa, Lisboa
Raúl Iturra
Instituto Superior das Ciências do Trabalho e da Empresa, Lisboa

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