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Os Espaços Públicos (de Lazer) na Cidade: Emergência de Novas Práticas e Vocações Territoriais

«Toda a cidade encontra as compensações
para as suas tensões e as suas frustrações,
no desenvolvimento dum imaginário»
Chombart De Lauwe

No imaginário colectivo, a cidade continua ainda associada a um universo feito de betão e de barulho, em que as ruas se transformaram em enormes garagens, onde a participação do cidadão é diminuta e a população, mais apressada que outrora, corre anónima pelo meio do tráfego, sem parar.

Se este é o quadro geral existente na maior parte das cidades do mundo, é necessário reconhecer, no entanto, que outras cidades, talvez as mais desenvolvidas, na América do norte e na Europa do norte, têm vindo, há cerca de duas décadas a esta parte, a integrar no seu seio novas dimensões de humanidade, de harmonia e mesmo de convivialidade. Pressionadas por parte dos cidadãos pela procura de espaços livres, de verdura, de comunicação e de sociabilização, as municipalidades tomaram «consciência» da necessidade de colocar à sua disposição um quadro espacial de vida agradável, desafogado, onde a natureza, os espaços e os equipamentos lúdicos, a liberdade e a cidadania são valores urbanos fundamentais.

Espaços verdes, mobiliário urbano, ruas mistas para peões, áreas de jogo, animação, lugares de reencontro, … têm surgido em força, nestas cidades, no decorrer das últimas três décadas. São, antes de mais, espaços públicos, lugares de vida e de sociabilização, e que, uma vez abertos a todos, representam áreas de liberdade e de democracia.

Termos como: passeios urbanos, ruas mistas, caminhos de peões, cinturas verdes, terrenos de aventura, ciclovias, espaços interesticiais, frentes de água, etc. fazem parte dum inventário que traduz, do ponto de vista dos conceptores, a devolução da cidade aos seus habitantes e a criação de hipotéticas soluções para melhorar a frequência e a qualidade dos espaços públicos situados no meio urbano.

Os espaços públicos urbanos devem essencialmente ser espaços de lazer, isto é, lugares de dinâmica cultural onde o lúdico faça ressaltar um conjunto de expressões ou rituais, sinónimos do direito à cidade e de usufruto de lugares «agradáveis para viver». Lugares que ofereçam uma grande escolha de actividades e que, ao prolongarem a vida interior, sirvam de receptáculo de muitas aspirações por vezes contraditórias, mas onde os cidadãos procurem sempre, mais ou menos conscientemente, estar em osmose com a sua unidade de vizinhança, o seu bairro, a sua cidade. O seu ordenamento é actualmente um dos aspectos vitais para a revitalização e a qualidade de vida no meio urbano. Eles interessam a todas as pessoas, independentemente do tempo livre e do grau de acessibilidades de cada um.

Nas cidades de Portugal, os espaços públicos de lazer são ainda demasiado objecto duma atenção vagamente condescendente: realizações puramente funcionais, simples décors , concepção de projectos ao sabor da moda ou em função de critérios muito limitados que passam quase sempre pela garantia da segurança, circulação, aparência física e menor custo.

Os utilizadores têm assim disponíveis espaços de uma grande racionalidade, mas de uma grande pobreza, quando do que se trata na realidade é de um outro empenhamento: ser capaz de aceitar o desafio de produzir, em conjunto com os cidadãos, os novos espaços públicos abertos que assegurem, por um lado, a satisfação e as necessidades dos seus mais activos utilizadores, e por outro, a variedade das opções, mais ou menos passivas, que representam outros tantos quadros da vida quotidiana da cidade.

As concepções dos espaços públicos de lazer, nas cidades portuguesas, ainda frequentemente reduzidos à noção de ordenamento paisagístico, representam um atraso considerável quando comparadas com as concepções das cidades mais próximas da Europa e, sobretudo, das cidades dos Estados Unidos.

As produções de novas territorialidades do lazer no meio urbano fazem-se, por parte dos actores, com uma desesperante lentidão. Elas caracterizam-se por duas visões antinómicas que polarizam a vivência urbana: por um lado, os "actores institucionais" (autarquias, urbanistas, interesses imobiliários, construtores, etc.), com suas receitas e suas fixações, sem alterarem de maneira durável as blocagens administrativas, mentais e culturais; por outro, os cidadãos a exigirem novos espaços públicos de liberdade e de cidadania enquanto lugares emergentes de novas culturas e práticas urbanas em equilíbrio com o ambiente.

Continua-se a produzir espaços correspondentes, antes de tudo, aos interesses dos actores mais poderosos em detrimento das necessidades reais expressas pelos cidadãos. Esta relação de forças entre os actores toma forma e mais significado nomeadamente aquando da planificação territorial, a qual não é neutra, apolítica e objectiva.

No contexto das cidades portuguesas, a reivindicação de novos espaços públicos para o lazer é um dos sinais de uma tendência que se está lentamente a iniciar e cujo movimento se dirige essencialmente para a exigência da melhoria da qualidade de vida urbana. Equipamentos e práticas, outrora inimagináveis fora do seu «território regulamentar» começam, especialmente por parte dos jovens, a sair dos seus ghettos: uso de paredes de escalada, práticas dos skaters e patinadores, exigência de ciclovias, como alternativa às congestionadas ruas de automóveis, são alguns exemplos de tímidas formas de participação de alguns habitantes e que uma grande parte da população começa a aceitar, construindo-se a ideia de que estes cidadãos não são pessoas irresponsáveis e marginais como muitas vezes o poder local tenta fazer passar. Estes pequenos, chamemos-lhe, «disfuncionamentos urbanos» que começam a agitar as ruas das nossas cidades, obrigam à reflexão e à procura das suas razões.

Confrontados com estes movimentos na cidade, aos responsáveis pede-se respostas abertas, práticas e métodos de planeamento estratégico adaptados à vida de hoje e à organização de cidades viradas para o futuro. É preciso ter a coragem de redesenhar os espaços públicos urbanos destinados aos cidadãos, de descongelar muitos deles, insípidos e desajustados em pelo menos 20 ou 30 anos, de diferenciar os públicos e aceitar a diversidade das práticas, recreativas ou não, tolerando as diferentes perspectivas dos utilizadores do espaço citadino.

Depois de um longo período de resignada passividade em aceitar o quadro jurídico instituído para os espaços públicos (de lazer) existentes, eis que grupos de cidadãos portugueses, a exemplo de outros movimentos já desencadeados há mais de uma década em outras cidades europeias e americanas, começam também a reivindicar novos territórios e a protestar relativamente a tanto controlo e centralismo sobre o espaço público urbano.

O que se exige é tão só o direito aos novos rituais urbanos e à qualidade de vida nas cidades. Em relação ao espaços públicos urbanos, os portugueses, neste final de século, querem ser mais livres, mais responsáveis e participantes e especialmente, tal como noutras cidades, que os deixem passar da imaginação à prática, ou seja, a uma outra maneira de viver o espaço-tempo urbano onde eles, como principais actores, têm indiscutivelmente uma, grande, palavra a dizer.

António Mendes Lopes
Centro Estudos Geográficos /UL
Instituto Politécnico de Setúbal


  
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Edição:

N.º 83
Ano 8, Setembro 1999

Autoria:

António Mendes Lopes
Instituto Politécnico de Setúbal
António Mendes Lopes
Instituto Politécnico de Setúbal

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