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Sumerhill...

Sumerhill, a escola libertária fundada por Alexander Sutherland Neill em Suffolk na Inglaterra, ocupa um lugar privilegiado no nosso imaginário pedagógico. Apesar de sabermos que não inscreveríamos lá os nossos filhos, devemos contudo reconhecer o fascínio que sentimos por uma instituição que foi, e continua a ser, uma referência primeira do movimento de renovação pedagógica que no princípio deste século, um pouco por toda a Europa e nos Estados Unidos da América, acreditava de um modo tão generoso quanto ingénuo na possibilidade de redenção das sociedades humanas através da transformação das escolas.
Sumerhill soa assim aos nossos ouvidos como um espaço de generosidade e de transgressão que nos permitiu compreender como as escolas poderiam ser diferentes na forma de pensar a educação como um projecto antropológico, de redefinir as suas finalidades sociais e, finalmente, de se realizarem como espaços educativos subordinados a uma outra "dignidade ontológica, existencial e moral" (Carvalho, 1992: 11).
Com cerca de 75 anos, Sumerhill foi a razão de ser de uma notícia do "Público" cujo título: "Escola progressista pode fechar" pretende ilustrar a ofensiva dos inspectores de educação contra o internato inglês. Segundo a jornalista que a subscreve, Hália Costa Santos - também ela colaboradora da "Página", as razões que legitimam a actuação dos inspectores tanto têm a ver com questões relacionadas com o rendimento escolar das crianças, como com questões que dizem respeito à natureza subversiva de algumas das práticas que em Sumerhill devem ser lidas à luz dos princípios educativos que explicam a sua fundação, nomeadamente, o da valorização da liberdade individual que, mais do que uma figura de retórica, constitui uma condição fundamental para se realizar qualquer acção que se reivindique como uma acção genuinamente educativa. Assim, o regime de auto-gestão de Sumerhill, a liberdade de costumes que é incentivada ou as possibilidades dos alunos optarem e decidirem pelas actividades que desejam realizar deverão ser entendidos, não necessariamente em função de uma atitude de demissão pedagógica, mas à luz de um projecto que, concorde-se ou não com o mesmo, se norteia, sobretudo, pela recusa "de uma sociedade demente e de uma humanidade enferma graças à disciplina repressiva a que crianças e jovens são submetidos nas famílias e nas escolas" (Trindade, 1998: 47).
O quotidiano em Sumerhill é pois um quotidiano escolar diferente. Vive-se, em regime de internato, num edifício instalado no meio de um grande parque, o ambiente propício para dar corpo a um projecto de uma escola construída à medida das crianças e dos adolescentes que a frequentam. Estes vão às aulas que entendem, frequentam actividades que normalmente não se encontram contempladas nos programas das escolas regulares e decidem as regras de funcionamento do internato, o que na opinião dos inspectores ingleses propicia que se exerça, de acordo com a notícia do "Público", "o direito negativo de não aprender", resultando daí uma "confusão entre a prática da preguiça e o exercício da liberdade individual". O facto de, em 1993, terem detectado a existência de alguns alunos com oito anos de idade que ainda não sabiam ler nem escrever, o facto de rapazes e raparigas partilharem as mesmas áreas de banho ou, ainda, o facto de alunos, professores e funcionários andarem a banhar-se nús na piscina são apenas alguns dos episódios que justificam a avaliação negativa da inspecção. Sumerhill é, no entanto, uma escola privada, cujas propinas são pagas pelas famílias dos jovens que a escolhem, exactamente, em função da especificidade dos seus princípios pedagógicos. Por outro lado, podem evocar-se, igualmente, os testemunhos positivos e as situações de sucesso profissional e social de muitos dos seus ex-alunos para se avaliar de um modo bastante mais positivo o projecto de educação do internato fundado por Neill. Um projecto que é reconhecido pelo próprio relatório dos inspectores como capaz de permitir àqueles que dele beneficiam uma boa compreensão do que é a cidadania e a participação democrática, para além de estimular relações interpessoais bastante positivas e calorosas entre todos os que vivem e trabalham em Sumerhill.
Discutindo entre nós, perguntávamo-nos se estes mesmos inspectores seriam tão solícitos face a outras escolas onde o sucesso na Matemática, no Inglês ou nas Ciências se constrói sobre o desrespeito, a indiferença e a subjugação dos alunos perante uma ordem escolar iníqua e desumana?
Perguntávamos também porque é que o discurso sobre a importância da liberdade de opção, constantemente agitado em qualquer ofensiva que se preze contra a escola pública, nem sempre obedece aos mesmos pesos e às mesmas medidas ?
O que faz correr os inspectores ingleses contra Sumerhill ? Algum arroubo de vitorianismo serôdio ou apenas o impulso de uma administração que através da normatividade do escolar impede a interpelação do mundo que se produz através do educativo ?
Pertencemos ao grupo daqueles que pensam que não só não deve existir qualquer incompatibilidade entre as aprendizagens instrumentais e o desenvolvimento pessoal e social dos indivíduos, como, mais do que isso, defendemos que este desenvolvimento só se pode realizar se as aprendizagens instrumentais contribuírem para o catalizar, adquirindo deste modo um outro sentido e legitimidade culturais. Ora, a construção de uma tal intimidade entre desenvolvimento humano e educação escolar só é possível em espaços onde a gestão da relação dos alunos com o saber se subordine a um outro tipo de gestão das relações de poder, o que, pelo menos, implica que se deva repensar radicalmente a escola como um espaço educativo. Uma reivindicação que nada tem a ver com as míticas exigências da tão cantada sociedade cognitiva, a partir da qual alguns visam instituir uma subversão tão ordeira como ordenada, mas com um projecto que se disponibiliza, apesar de alguma indefinição dos seus contornos políticos e epistemológicos, a contribuir para o "avanço do género humano para a maioridade" (Habermas, 1968: 145). É um projecto animado por uma tal vontade e um tal desejo que em Sumerhill se tem vindo a tentar construir, pese todos os equívocos políticos, culturais, existenciais e pedagógicos que o atravessam. É com este projecto, no entanto, que as administrações neo-liberais responsáveis pelos sistemas educativos ocidentais se ofendem, mesmo que todos os dias se confrontem, sem uma solução consequente e exequível, com escolas tristes e cruéis, não só para os alunos que as frequentam como, igualmente, para os professores que as aguentam.

Ariana Cosme
Instituto Irene Lisboa - Porto
Rui Trindade
Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação - Universidade do Porto

Bibliografia

  • CARVALHO, A. D. de (1992). A educação como um projecto antropológico. Porto: Edições Afrontamento
  • HABERMAS, J. (1968). Técnica e Ciência como "Ideologia". Lisboa: Edições 70
  • TRINDADE, R. (1998) As escolas do ensino básico como espaços de formação pessoal e social: Questões e perspectivas. Porto: Porto Editora

  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 83
Ano 8, Setembro 1999

Autoria:

Ariana Cosme
Fac. de Psicologia e Ciências da Educação, Univ. de Porto
Rui Trindade
Faculde de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade do Porto
Ariana Cosme
Fac. de Psicologia e Ciências da Educação, Univ. de Porto
Rui Trindade
Faculde de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade do Porto

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