Página  >  Edições  >  N.º 83  >  A Propósito de Pagar ou Não a Universidade Pública

A Propósito de Pagar ou Não a Universidade Pública

A propósito de pagar ou não pagar a Universidade Pública

De como a realidade brasileira pouco difere da portugues

Recordando a cantilena "os ricos que paguem a crise"

(a propósito de pagar ou não pagar a Universidade Pública)

"os ricos devem pagar pelos pobres"
significa que "os ricos são vistos como cidadãos
(pagam impostos e mensalidades)
e os pobre não
(mesmo que saibamos que, neste pais,
os ricos justamente não pagam impostos).

Volta à baila uma afirmação que, vira-e-mexe, reaparece na cena politica: a da Universidade Pública paga como "uma questão de justiça social".
A novidade, agora, está em considerar-se que tal medida já não corre o risco de impopularidade junto à opinião pública porque a sociedade brasileira, de um lado, teria absorvido a ideia de que o mercado é a
"ultima ratio" da realidade e, de outro, será sempre favorável a medidas governamentais que, dizem alguns, tratam de "beneficiar maiorias em detrimento de minorias", mesmo que essas esperneiem com a perda de privilégios.
Essa cantilena populista não é nova. Foi entoada nos anos 70 e 80 com o refrão "os ricos devem pagar pelos pobres".
Curiosamente, porem, não a ouvimos quando o governo despejou bilhões para beneficiar bancos e banqueiros, os quais, até prova em contrario, não parecem constituir exatamente a camada dos pobres.
Também não a ouvimos nos processos de privatização da saúde e seus planos escorchantes. Nem quando se trata de definir as concessões para as telecomunicações.
Por alguma razão insólita, volta e meia, no pais dos 10 milhões de desempregados a ideia de começar a justiça social pela cobrança do ensino universitário público parece incendiar corações e mentes.
Mais surpreendente ainda é a aparente recepção positiva dessa ideia num pais que não consegue acertar a declaração do Imposto de Renda nem taxar as grandes fortunas e que, portanto, não tem como saber legalmente quem são os ricos.
O entusiasmo populista é tão grande que não se deixa afetar por esse argumento, nem mesmo por argumentos económicos comparativos que mostram que nos países metropolitanos o investimento público no ensino superior é elevado (chega a ser a única fonte de financiamento, em alguns países europeus, que também praticam o sistema de bolsas para estudantes de graduação; e é fonte majoritaria dos recursos investidos nas pesquisas de ponta, nos Estados Unidos).
O primeiro argumento em favor do ensino universitário público pago baseia-se num dado de fato: os filhos da classe media e da classe dominante estudam em caros colégios particulares, recebem uma formação aprimorada, fazem os cursinhos pré-vestibular (em geral, caríssimos) e tomam praticamente todas as vagas nas Universidades públicas, delas excluindo os filhos da baixa classe media e da classe trabalhadora (que permanecem fora do ensino superior ou cursam Universidades privadas dispendiosas e muitas vezes de baixo nível).
A esse argumento acrescenta-se um segundo, também com base em fatos: fala-se nos elevados custos das Universidades públicas, que poderiam ser reduzidos com a cobrança de mensalidades para os filhos das classes abastadas.
Qual o logro do primeiro argumento? Escamotear o principal, isto é, a devastação a que foi submetida a escola pública de primeiro e segundo graus quando a ditadura - que tinha no Conselho Federal de Educação os proprietários das escolas privadas- desviou recursos públicos para as escolas particulares, introduziu a licenciatura curta para formação de professores do ensino fundamental e médio, arrochou os salários e preparou o caminho da exclusão universitária para a baixa classe media e a classe trabalhadora, oferecendo-lhes como consolação o funesto e fracassado profissionalizante.
O argumento, portanto, abandona o campo das causas, opera com os efeitos da politica dominante e propõe uma solução duplamente falsa: em primeiro lugar, porque deixa intocado o problema de origem; em segundo lugar, porque acaba levando para a Universidade o mesmo projeto que destruiu a escola pública de primeiro e segundo graus.
O segundo argumento é enganador, pois calcula os gastos tomando as verbas anuais das Universidades públicas, dividindo-as pelo numero de alunos, e tem como resultado uma cifra altíssima, porque deixa na sombra o fato de que nessas verbas estão incluídos hospitais universitários, centros de atendimento à população, centros de pesquisas, obras de infra-estrutura e aquisição de livros e equipamentos para laboratórios, além do salário dos inativos. Porem é enganador ainda por uma outra razão mais profunda.
Com efeito, em muitas unidades da USP (não sabemos se o mesmo ocorre em outras Universidades estaduais e federais) o ensino pago já está instituído com o uso de dois mecanismos principais:

  1. por um decreto do MEC, estudantes de pos-graduação devem cumprir uma parte de seus créditos dando aulas para a graduação (maneira de não abrir concursos para contratar novos professores), e isso libera professores, que passam a oferecer cursos pagos de extensão universitária e que, por serem
    pagos, são altamente seletivos ou elitistas;
  2. por meio de convénios com fundações e empresas privadas, são oferecidos cursos pagos de especialização e de pos-graduação com critérios próprios de selecção e de avaliação e, como no caso anterior, produzem discriminação económico-social entre os estudantes.

Em outras palavras, até prova em contrário, pagamento de cursos e igualdade de condições (isto é, justiça democrática) não andam juntos.
A posição populista aparece como moderna e pragmática porque parece se basear em análises de problemas reais das Universidades públicas e, se cala fundo nas mentes conservadoras, é porque desde o "milagre brasileiro" a Universidade foi oferecida à opinião pública como meio certo de ascensão social e prestígio.
Essa proposta, porem, não é realmente pragmática porque não introduz (correta ou incorretamente) os fatos para encontrar uma solução localizada e imediata que resolveria, no curto prazo, alguns dos sérios problemas sociais brasileiros, dos quais a Universidade pública gratuita é apenas um caso particular.
Também não é realista e pragmática porque a solução apontada não leva em conta aspectos práticos complicados e talvez insolúveis, como, por exemplo, a determinação de quem, com equidade, pode pagar e quanto pode pagar. Na verdade, os fatos e a solução são colocados para afirmar que se trata de uma questão de principio, isto é, de justiça social.
Vejamos então se, no nível dos princípios, a Universidade Pública paga, que à primeira vista pareceria ser um fator decisivo de justiça social, cumpriria efetivamente esse papel.
Fala-se atualmente em "colapso da modernização" para referir o declínio do Estado de Bem-Estar e a sua correcção racionalizadora pela economia politica neoliberal.
Esse "colapso", no entanto, pode ser analisado sob outra perspectiva, se o percebermos, como faz Francisco de Oliveira, a partir das transformações económicas e politicas introduzidas pelo próprio Estado de Bem-Estar com a criação do fundo público.
Esse se caracteriza:

  1. pelo financiamento simultâneo da acumulação do capital (os gastos públicos com a produção, desde subsídios para a agricultura, a industria e o comercio, até subsídios para a ciência e a tecnologia, formando amplos setores produtivos estatais que desaguaram no celebre complexo militar-industrial, alem da valorização financeira do capital por meio da divida pública etc.);
  2. pelo financiamento da reprodução da forca de trabalho, alcançando toda a população por meio dos gastos sociais (educação gratuita, medicina socializada, previdencia social, seguro-desemprego, subsídios para transporte, alimentação e habitação, subsídios para cultura e lazer, salário-familia, salário-desemprego etc.).

Em suma, o Estado do Bem-Estar introduziu a república entendida estruturalmente como gestão dos fundos públicos, os quais se tornam precondição da acumulação e da reprodução do capital (e da formação da taxa de lucro) e da reprodução da forca de trabalho por meio das despesas sociais.
Numa palavra, houve a socialização dos custos da produção e a manutenção da apropriação privada dos lucros ou da renda (isto é, a riqueza não foi socializada).
A acção de duplo financiamento gerou um segundo salário, o salário indireto, ao lado do salário direto, isto é, o direto é aquele pago privadamente ao trabalho, e o indireto é aquele pago públicamente aos cidadãos para a reprodução de sua forca de trabalho.
O resultado foi o aumento da capacidade de consumo das classes sociais, particularmente da classe media e da classe trabalhadora; ou seja, o consumo de massa.
Nesse processo de garantia de acumulação e reprodução do capital e da forca de trabalho, o Estado endividou-se e entrou num processo de divida pública conhecido como deficit fiscal ou "crise fiscal do Estado".
A isso se deve acrescentar o momento crucial da crise, isto é, o instante de internacionalização oligopolica da produção e da finança, pois os oligopolios multinacionais não enviam aos seus países de origem os ganhos obtidos fora de suas fronteiras e, portanto, não alimentam o fundo público nacional, que deve continuar financiando o capital e a forca de trabalho.
É isso o "colapso da modernização" e a origem da política neoliberal, que propõe "enxugar" ou encolher o Estado.
Ora, o que significa exatamente o fundo público (ou a maneira como opera a esfera pública no Estado de Bem-Estar)? Como explica Francisco de Oliveira, o fundo público é o antivalor (não é o capital) e é a antimercadoria (não é a forca de trabalho) e, como tal, é a condição ou o pressuposto da acumulação e da reprodução do capital e da forca de trabalho.
É nele que se vem por a contradição atual do capitalismo, isto é, ele é o pressuposto necessário do capital e, como pressuposto, é a negação do próprio capital (visto que o fundo público não é capital nem trabalho).
Por outro lado, o lugar ocupado pelo fundo público com o salário indireto faz com que a força de trabalho não possa ser avaliada apenas pela relação capital-trabalho (pois na composição do salário entra também o salário indireto pago pelo fundo público).
Ora, no capitalismo clássico o trabalho era a mercadoria padrão que media o valor das outras mercadorias e da mercadoria principal, o dinheiro.
Quando o trabalho perde a condição de mercadoria padrão, essa condição também é perdida pelo dinheiro, que deixa de ser mercadoria e se torna simplesmente moeda ou expressão monetária da relação entre credores e devedores, provocando, assim, a transformação da economia em monetarismo.
Alem disso, com sua presença sob a forma do salário indireto, o fundo público desatou o laço que prendia o capital à força de trabalho (ou o salário direto).
Essa amarra era o que, no passado, fazia a inovação técnica pelo capital ser uma reação ao aumento real de salário e, desfeito o laco, o impulso à inovação tecnológica tornou-se praticamente ilimitado, provocando expansão dos investimentos e agigantamento das forcas produtivas, cuja liquidez é impressionante, mas cujo lucro não é suficiente para concretizar todas as possibilidades tecnológicas.
Por isso mesmo, o capital precisa de parcelas da riqueza pública, isto é, do fundo público, na qualidade de financiador dessa concretização.
Esse quadro indica que o fundo público define a esfera pública da economia de mercado socialmente regulada e que as democracias representativas agem num campo de lutas polarizado pela direcção dada ao fundo público.
Visto sob a perspectiva da luta politica, o neoliberalismo não é, de maneira nenhuma, a crença na racionalidade do mercado, o enxugamento do Estado e a desaparição do fundo público, mas a posição, no momento vitoriosa, que decide cortar o fundo público no polo de financiamento dos bens e serviços públicos (ou o do salário indireto) e maximizar o uso da riqueza pública nos investimentos exigidos pelo capital, cujos lucros não são suficientes para cobrir todas as possibilidades tecnológicas que ele mesmo abriu.
Que o neoliberalismo é a opção preferencial pela acumulação e reprodução do capital, o montante das dividas públicas dos Estados nacionais fala por si mesmo.
Mas isso significa também que a luta democrática das classes populares está demarcada como luta pela gestão do fundo público, opondo-se à gestão neoliberal. E é nesse campo democrático que se coloca, como questão de principio, a Universidade pública gratuita, juntamente com a melhoria da escola pública do primeiro e do segundo graus.
Noutras palavras, a luta pela qualidade do ensino, pela boa formação dos professores e dos alunos, pela ampliação da rede pública escolar, pela dignidade dos salários de professores e funcionários, assim como a luta pela gratuidade da Universidade pública e pela qualidade da formação e da pesquisa não são lutas de uma minoria barulhenta, nem de lobistas e corporativistas, mas a disputa democrática pela direcção da aplicação do fundo público. É nesse campo que se põe a justiça social.
De fato, que significa a cantilena "os ricos devem pagar pelos pobres"?
Significa, em primeiro lugar, que os ricos são vistos como cidadãos (pagam impostos e mensalidades) e os pobres não (mesmo que saibamos que, neste pais, os ricos justamente não pagam impostos); em segundo lugar, que a educação não é vista como um direito de todos, mas como um direito dos ricos e uma benemerência para os pobres; em terceiro lugar, que a cidadania, reduzida ao pagamento de impostos e mensalidades, e o assistencialismo, como compaixão pelos deserdados, destroem qualquer
possibilidade democrática e de justiça.
Ultrapassando a simples ideia de um regime politico identificado à forma de governo, a democracia, como forma geral de uma sociedade, caracteriza-se pela afirmação da liberdade e da igualdade dos cidadãos e, por essa razão, o maior problema da democracia numa sociedade de classes é o da manutenção desses dois princípios sob os efeitos da desigualdade real.
Eis por que a luta politica democrática na sociedade de classes contemporânea passa pela gestão do fundo público pelo qual a igualdade se define como direito à igualdade de condições.
Somente com a ideia de criação e conservação dos direitos estabelece-se o vínculo profundo entre democracia e a ideia de justiça.
Embora a visão liberal reduza a democracia ao regime da lei da ordem, essa imagem deixa escapar o principal, isto é, que a democracia está fundada na noção de direitos e por isso mesmo está apta a diferenciá-los de privilégios e carências.
Os primeiros são, por definição, particulares, não podendo generalizar-se num interesse comum nem universalizar-se num direito, porque deixariam de ser privilégios.
Carências, por sua vez, são sempre especificas e particulares, não conseguindo ultrapassar a especificidade e a particularidade rumo a um interesse comum nem universalizar-se num direito.
A cantilena "os ricos devem pagar pelos pobres" reforça a polarização entre privilégio e carência e, longe de ser instrumento de justiça social, é a impossibilidade de que esta seja instituída pela acção criadora de direitos.
A educação, em todos seus níveis, é um direito e, como tal, dever do Estado, isto é, da esfera pública na sociedade de classes, quando o fundo público não se destina exclusivamente ao capital.


Marilena Chaui
Departamento de Filosofia da Universidade de São Paulo
(artigo já públicado no caderno "Mais" da "Folha de SP" de 11.07.99)

Jornal a Página da Educação nº 83 - Setembro de 1999, pg. 4


  
Ficha do Artigo
Imprimir Abrir como PDF

Edição:

N.º 83
Ano 8, Setembro 1999

Autoria:

Marilena Chaui
Investigadora. Universidade de São Paulo, Brasil.
Marilena Chaui
Investigadora. Universidade de São Paulo, Brasil.

Partilhar nas redes sociais:

|


Publicidade


Voltar ao Topo