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Excessos e Limites nas Escolas de Hoje

No último número de "A Página" propósito de algumas considerações sobre a natureza "híbrida" dos nossos alunos de hoje e da dificuldade que, em função disso, os professores têm em "lidar com eles", deixei, subliminarmente, a ideia de que essa dificuldade tende a exprimir-se numa procura de soluções que oscilam entre dois pólos, definidos, um, pelo paradigma da compreensão e comunicação e outro pelo paradigma do controlo da disciplina e dos saberes.
Sendo certo que, na prática, nada impede que estes dois pólos se toquem e se intercondicionem, a verdade é que ao nível discursivo e no plano da justificação das práticas profissionais, bem como no da definição organizacional das acções e da política de escola, eles remetem para visões antagónicas que, sendo simplificadoras, nem por isso deixam de condicionar não apenas a relação profissional, mas também a identidade pessoal e a natureza do próprio quotidiano das escolas. É dentro deste quadro que toma sentido, muitas vezes dramático, a expressão, frequentemente proferida, "essa não é a minha escola" que aparece como remate, simultaneamente impotente e desafiador, de muitas tentativas de construção em comum dum mesmo referente de profissionalidade.
Se o confronto que se trava entre os dois paradigmas, acima referidos, não é, teoricamente, uma questão nova, os termos em que ele se desenvolve nos nossos dias confere-lhe uma espessura de crise estrutural, uma vez que é atravessado por uma dimensão prática que excede, permanentemente, o próprio registo teórico em que é possível pensá-lo. Este excesso, que resulta, essencialmente, de uma lógica de apropriação dos bens da escola segundo uma dinâmica de utilização individual, ideologicamente suportada numa meritocracia, cada vez mais confundida com justiça, contunde tanto com os referentes do paradigma da comunicação, como quanto com os do controlo da disciplina e dos saberes, embora por razões diferentes. Com os primeiros, porque os seus referentes e os da lógica de mercado são incompatíveis, pura e simplesmente. Com os segundos, porque ficam sujeitos a uma estratégia de investimento pessoal por parte dos alunos, que inclui os respectivos interesses parentais, para não falar já de outro tipo de interesses, que põem em causa a própria competência e independência dos profissionais da educação e do ensino.
Na verdade, para o paradigma da comunicação, a prática é pensada em ordem à construção de uma humanidade comum que, utopicamente, se alimenta da intercompreensão com vista à edificação do reino da transparência e da concórdia. A hibridez dos alunos, as suas diferenças sociais, culturais e económicas, são constitutivas dos seus direitos, enquanto condições de acesso a uma humanidade mais profunda, ao mesmo tempo que, por outro lado, estes direitos se constituem em "deveres" dos educadores, cuja acção se compromete, prioritariamente, com a razão emancipatória e não com a razão técnico-instrumental. Estes "deveres" são, então, mais disposições ou mandatos ético-políticos, fundados numa história e num projecto comuns, que deveres funcionais.
Por outro lado, para o paradigma do controlo da disciplina e dos saberes, a prática é representada em termos do exercício duma competência científica e técnica que vale por si mesmo, independentemente de o seu significado e o seu uso serem cada vez mais afectados pelo valor de mercado, mesmo que esse valor seja "apenas" simbólico.
Sendo formas simplificadas e simplificadoras de justificar as práticas profissionais, como se disse, elas significam ambas, embora por vias opostas, uma espécie de limite axiológico e deontológico ao excesso de subjectividade que habita as escolas de hoje, uma operando em torno da ideia de projecto, prevalentemente apelando à acção e à produção, outra, em torno de comportamentos e conteúdos, prevalentemente ligados à reprodução.
Convenhamos, porém, que esta espécie de limite dualizado ao excesso de heterogeneidade das escolas é bem mais a expressão da tendência para a dualização do sistema educativo do que o princípio da sua transformação. Mas isso será para a próxima.

Manuel Matos
Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação
Universidade do Porto


  
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Edição:

N.º 82
Ano 8, Julho 1999

Autoria:

Manuel Matos
FPCE, Univ. do Porto
Manuel Matos
FPCE, Univ. do Porto

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