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No país da Sophia

Agradeço os comentários (de apoio ou de rejeição) ao meu último artigo, que provam que os professores têm sentido crítico e me ajudam a melhorar estas reflexões. Não sabia serem tantos os leitores destas linhas e tive confirmação do que já desconfiava: a edição de manuais escolares constituiu-se num ponto crítico do sistema. Vejamos porque o afirmo.
O DEB solicitou aos professores e às escolas que registassem "os problemas detectados, eventualmente, em alguns" dos manuais. Quantos professores, quantas escolas o fizeram? O DEB pediu a todos os professores que a selecção dos manuais fosse "bem ponderada e precedida de uma análise criteriosa". Devo concluir que os professores não atenderam aos pedidos do Ministério, ou que nem leram os manuais... que adoptaram? Devo concluir, igualmente, que os técnicos do Ministério também não leram a sua circular de 20 de Abril de 1999? Andarão tão distraídos? Se agissem em consonância com princípios de "qualidade científica e pedagógica", a única decisão coerente seria a de não aprovar qualquer dos manuais apresentados pelas editoras.
Para além de serem todos mais ou menos iguais, os manuais recebidos nas escolas são de uma confrangedora indigência literária e pedagógica e não custa a acreditar que um qualquer ignorante das pedagogias possa aspirar a ser autor de mais um manual do mesmo tipo (sem ofensa para o "ignorante", claro).
Reconheçamos que a edição de manuais não passa de um grande negócio. Sabemos que há muita gente a enriquecer à sua custa, mas haverá, certamente, outras (e mais nobres) maneiras de ganhar a vida. Com mágoa, vejo muitos professores, que considero inteligentes e esclarecidos, deixarem-se enredar neste negócio, como consumidores ou como autores. Quanto piores são os manuais, mais vendem. Alguns colegas, que tenho como amigos e óptimos profissionais, envolveram-se em projectos que foram fracassos comerciais para as editoras que ousaram correr o risco de apostar na qualidade. E recordo o "Sol Livro" que, talvez por ser um excelente manual, também pouco vendeu.
Os manuais constituem-se como enformadores de práticas de ensino obsoletas, são um obstáculo a uma reflexão que suscite mudança. Poder-se-á argumentar que o professor pode fazer bom uso do manual. Ou ainda que certos manuais incluem excertos de boa prosa ou poesia, que fazem propostas de trabalho em grupo, que são atraentes, etc. Mas contribuem para transformar os professores em consumidores de currículo, contribuem para que se mantenha a perene confusão entre manual e programa...
A que se deve a manutenção do status quo editorial? A uma formação inicial com estágios viciados por planos de aula (iguais para todos os alunos) e subordinados ao uso de manuais ((iguais para todos os alunos)? Às pressões de pais que fazem depender a matrícula do seu filho da garantia de que a professora não lhe ensinará as letras senão do mesmo modo que ele as aprendeu?
Se os relatórios produzidos pelos técnicos do Ministério da Educação divulgaram como dados da avaliação dos manuais escolares adoptados nas escolas portuguesas "erros científicos, total ausência de correspondência com os programas oficiais e falta de adequação da linguagem à idade dos alunos", porque continuam muitos professores a insistir na adopção de livros carregados de asneiras?
Depois de ler a lição e de resolver os exercícios dos manuais, restará algum tempo ao professor para ensinar? Restará aos alunos tempo para aprenderem? Se tudo vem nos livros, para que servem os professores? O ensino centrado no uso do manual dificilmente se distancia das práticas tradicionais, sempre que o manual funciona como único elemento estruturador do trabalho na sala de aula. O manual pauta o ritmo da aula dada por um plano do professor para o hipotético "aluno médio", i. é, para nenhum aluno. O "aluno médio" deverá copiar, transcrever, escrever, deverá dissecar textos enfadonhos como cadáveres, interiorizando o ódio à leitura. No país da Sophia, por que não deixam os professores que os seus alunos se deliciem a ler histórias inteiras no tempo dedicado à repetição de textos aos pedacinhos?
Há razões de sobra que só o peso da tradição, o senso comum pedagógico e uma deficiente formação de professores nos impedem de reconhecer. Nada me move contra as editoras. O problema não reside no mercantilismo editorial, mas nas escolhas dos professores. Conheço alguns que, depois de reflectir sobre o modo como as crianças aprendem a ler, após terem lido um determinado livrinho do António Torrado, ou percebido para que pode servir a "Fada Oriana", concluem que, ao contrário daquilo que se ouve por aí dizer (que a culpa é do sistema...), são os professores que têm nas suas mãos o poder de mudar. Basta que queiram.
Enquanto não quiserem, continuarão a ensinar às pobres das criancinhas que, na falta de melhor entretenimento, o Catita dá patadas ao cão ou que a Belita bate na tia. As tias, por sua vez, entrarão no próximo século (em 2001!), tal como faziam as suas pentavós: a tapar potes e a ir à mata a pé.

1 Da Matilde Rosa Araújo, se a memória não me atraiçoa
2 Também de memória: "O cão come o osso ou era uma vez um cão chamado Bibi"

José Pacheco
Escola da Ponte / Vila das Aves


  
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Edição:

N.º 82
Ano 8, Julho 1999

Autoria:

José Pacheco
Escola da Ponte, Vila das Aves
José Pacheco
Escola da Ponte, Vila das Aves

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