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Julho...

O mais novo despediu-se do Jardim de Infância e, por vezes, lá o apanhamos a falar com redobradas expectativas da escola onde quer aprender a ler e continuar a brincar. A mais velha entrou-nos, irónica, pela casa dentro a negociar a sua proposta de ocupação do tempo de férias, utilizando as notas das provas globais como um argumento a esgrimir face à nossa eventual casmurrice. Para trás ficou muita angústia partilhada, muitas exigências sem sentido aparente, inquietação quanto baste face à crescente escolarização das nossas vidas.

Em Julho, talvez devido ao aroma de férias que paira no ar, é inevitável que perguntemos para que serve a escola.

E para que serve? Para que se ensine os meninos e as meninas a ler e a escrever através de frases tão despudoradas como aquelas que o Zé Pacheco transcreve no seu artigo de "a Página" de Junho (1)? O que aprenderá o nosso filho no dia em que souber que "O xerife comeu muito xuxu, tau, tau, tau, toca o teu berimbau"? O que aprenderá, no entanto, se pelo contrário não conseguir aprender a ler que "o Óscar viu os ovos e abriu os olhos"?

Para que serve uma escola que se constrói sobre a dor e o sofrimento quotidiano de professores, alunos e encarregados de educação? É inevitável que isso aconteça? Leia-se o que Matias Alves tem vindo a escrever sobre o assunto no semanário "Correio da Educação"(2), relembrando-nos o efeito totalitário e definitivo dos veredictos escolares sobre a vida dos nossos adolescentes (Alves, 1999). Relembrando-nos, também, como os exames nacionais do Ensino Secundário não só fagocitam a actividade que professores e alunos quotidianamente protagonizam nas suas salas de aula, como, por esta razão, estimulam a transformação das escolas em espaços que, do ponto de vista curricular, se vão afirmando por uma espécie de autismo cultural crescente face às exigências e necessidades da vida das pessoas no mundo contemporâneo. A crise da instituição escolar adquire assim novos contornos, não porque tenha deixado de alfabetizar as massas e de seleccionar as elites, mas porque ainda o faz para um mundo que deixou de existir e segundo um registo epistemológico que só faz sentido no arquipélago em que muitas das nossas escolas se foram transformando.

Por isso, também, é necessário resgatar-se a educação escolar da tutela do que Rui Canário designa por "taylorização dos processos de ensino" (Canário, 1999: 102), a partir da qual se legitima a operacionalização de procedimentos pedagogico-didácticos que tendem a privilegiar as respostas em detrimento das perguntas, as soluções em detrimento dos problemas, os programas em detrimento dos projectos(3). Do mesmo modo que se torna urgente recusar a hegemonização dos diferentes espaços em que vivemos por parte dos padrões relacionais, do tempo e da teleologia que, em conjunto, caracterizam o "modo de socialização escolar" (Canário, 1999: 97).

Descobre-se, assim, mais uma razão para bendizer as férias que se avizinham. Esse momento em que a nossa filha poderá gozar o mar sem ser obrigada a determinar, "em partes por milhão, a concentração de iões de magnésio" que existe na sua água, podendo viver também esse tempo de ócio e lazer sem ter de se preocupar se a sua busca da felicidade se aproxima mais da perspectiva platónica se da perspectiva epicurista. Arrisca-se, enfim, a aprender alguma coisa ou a não aprender nada; situação que, reconheça-se, sempre estaria sujeita, por mais que as operações de prestidigitação pedagógica tentem ocultar este facto, iludindo-nos acerca da omnipotência dos dispositivos tecnico-metodológicos, mesmo que bem manipulados, serem capazes de, em qualquer circunstância, gerarem aprendizagens.

Que estas férias nos possam resgatar da ditadura do saber escolar, ajudando-nos a encontrar novos sentidos para a nossa actividade como docentes, são os votos que expressamos neste Verão. Se formos capazes de experimentar pescar um robalo, cozinhá-lo e comê-lo, sem fazer do pobre bicho um pretexto para uma pequena dissertação sobre as suas guelras é porque estamos dispostos a beneficiar, apenas, do prazer de nos sentarmos à mesa com pessoas de quem gostamos, à luz do sabor de um peixe bem grelhado. Se estivermos dispostos a entrar numa velha igreja românica, sentarmo-nos e soubermos escutar o seu silêncio, ler a sua obscuridade, sem mais pretensões do que aquelas que decorrem da necessidade de nos abrigarmos do calor, talvez possamos encontrar horizontes que desconhecíamos. Quer num quer noutro caso, a possível dimensão educativa das experiências descritas depende da forma como as mesmas nos possam afectar, sem que à partida os seus efeitos possam ser previstos, por nós próprios ou por outros, ou aferidos por instrumentos de avaliação rigorosos. Sem que à partida exista qualquer intencionalidade prévia que determine o modo como vivemos qualquer uma dessas experiências de vida.

Propõe-se, por isso, que nas férias, dispondo de um tempo que normalmente não temos, possamos descobrir como uma conversa calma e despretensiosa, ao fim da tarde, no bar da praia pode constituir um momento de encontro, cuja matriz urge reabilitar noutros espaços e noutros tempos das nossas vidas, nomeadamente nas nossas escolas e nos nossos Centros de Formação.

Ariana Cosme
Instituto Irene Lisboa / Porto
Rui Trindade
Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação / Universidade do Porto

(1) PACHECO, José (1999). "Doze em um". A Página, ano 8, nº81, 19
(2) ALVES, José Matias (1999). "O sofrimento dos alunos". Correio da Educação, nº7
(3) CANÁRIO, Rui (1999). Educação de adultos: Um campo e uma problemática. Lisboa: Educa - Formação


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 82
Ano 8, Julho 1999

Autoria:

Ariana Cosme
Fac. de Psicologia e Ciências da Educação, Univ. de Porto
Rui Trindade
Faculde de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade do Porto
Ariana Cosme
Fac. de Psicologia e Ciências da Educação, Univ. de Porto
Rui Trindade
Faculde de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade do Porto

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