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"Propaganda Turística"

Texto de um jornalista cubano de visita turística a Portugal

O meu primeiro contacto com Portugal foi há setenta anos, através de um gramofone ou fonógrafo de corda, daqueles com uma grande buzina preta que parecia a cauda de um golfinho. A minha avó ouvia um disco com uma música alegre e contagiante. Perguntei-lhe o que era e respondeu-me "é o fado, a música de Portugal". Lembro-me de ela dizer: "este é o fado, fadinho, fadeiro, etc.". Vinte anos mais tarde, nos anos cinquenta, veio a Cuba o grupo espanhol "Los Chavales de España" que popularizaram na rádio "Lisboa Antiga" uma bela canção nostálgica e romântica que convidava a visitar estas paragens. A música foi, pois, o primeiro incentivo para desejar conhecer este país que agora visitamos.
A minha mãe encarregou-se de me molhar a cabeça com Água de Portugal, para encaracolar o cabelo. Era uma espécie de colónia com um delicado perfume que às vezes me inunda o olfacto e me faz esquecer a calvice. Naquele tempo tinha uma brilhante e vigorosa cabeleira preta que associei sempre às virtudes da Água de Portugal. Anos mais tarde o meu amigo José Angel Buesa, um dos poetas mais populares de Cuba nos anos cinquenta, pôs-me em contacto com o vinho do Porto, do qual era um grande apreciador, e converteu-me num propagandista espontâneo das suas virtudes, até que o bloqueio norteamericano fez desaparecer totalmente dos bares as garrafas de vinho do Porto.

Cantámo-lo com os versos de Buesa:

Digo-te adeus e talvez com esta despedida
meu mais formoso sonho mora dentro de mim,
mas digo-te adeus, para toda a vida,
mesmo que toda a vida siga pensando em ti.

Queria contar-vos estas coisas para que compreendam a satisfação com que fazemos esta visita. No meu caso particular unem-me a Portugal música, poesia, perfumes de infância, enfim, essas pequenas coisas com as quais vamos transformando as nossas vidas. E agora, para falarmos do nosso país, não nos resta senão olhar para trás, para o século XV, quando os pouquíssimos turistas que nos visitavam vinham em frágeis pirogas; alguns, como o cacique Hatuey, anos mais tarde, pediam a residência permanente na ilha e pregavam a rebeldia como elemento antecipador do que devia ser, séculos depois, a nossa identidade nacional. Quando foi condenado à fogueira e um sacerdote quis salvá-lo com a confissão, para que ganhasse o reino dos céus, Hatuey perguntou-lhe se no céu havia espanhóis. Perante a resposta afirmativa do sacerdote, Hatuey exlamou: "então não quero ir para céu". Como é lógico morreu na fogueira, mas o fogo não pode reduzir a cinzas os seus princípios.

É importante relembrar esta atitude, se quisermos reflectir sobre o desenvolvimento cultural numa perspectiva ética e, sobretudo, perante os desafios que devemos enfrentar no próximo milénio. Por exemplo, a OTAN.

Mas voltemos ao princípio. Narram os historiadores que Cristóvão Colombo, o primeiro "operador turístico" que visitou esta pequena ilha, ao ver as suas praias, as suas aves e a sua bela vegetação, exclamou maravilhado: "Esta é a terra mais bela que os olhos humanos viram". É o primeiro antecedente conhecido dos cartazes turísticos de Publicitur.
Os aborígenes receberam aqueles primeiros turistas que chegaram às nossas costas com frutas, conchas e danças a que chamavam areítos. Contudo a salsa não era conhecia no nosso país. Desde então - há mais de cinco séculos - a fusão entre a natureza e a cultura determinou a natureza do homem como criador o que se tornou numa constante como atractivo turístico desta ilha. Colombo foi o pioneiro do turismo ecológico.

Não obstante, as contradições não se fizeram esperar. Não faltou, naquela ocasião, o tripulante faminto de carícias, exacerbado pelo nome das suas embarcações "La Niña", "La Pinta", e "La Santa María" de belas popas e filosas proas, que fixara os seus olhos nas nossas aborígenes precursoras do traje de uma só peça - a debaixo - iniciando assim o que mais tarde se chamaria turismo de sexo, que por razões éticas nos recusamos a aceitar.

Tanto assim é que há agências de informação estrangeiras que asseguram que o termo jinetera, tão em voga para denominar uma singular prostituição em espécie (não convertida em moeda) que nos vem da Conquista, já que foram os Conquistadores que trouxeram para as nossas terras, esse antecessor do automóvel de luxo - o cavalo - como meio de transporte. Eram eles que ofereciam às nossas aborígenes, também de formosas popas e filosas proas, espelhos pequenos e castanholas, a troco de favores. Seduziam-nas e raptavam-nas nos seus briosos corcéis. Daí o termo jinetera, que chegou até aos nossos dias. Essas agências querem culpar-nos de tudo, até do pecado original, como se a prostituição tivesse sido inventada em Cuba.

Voltando aos descobrimentos o certo é que daquelas festas chamadas areítos, da sua música e da sua dança, não ficaram gravações de vídeo nem filmes. Mas o espírito generoso e festivo dos seus primeiros habitantes perdurou para além dos nossos primeiros povoadores.

Não é estranho, pois, que quando alguém, em qualquer lugar do mundo, manifesta o desejo de voltar a Cuba depois de a ter visitado mencione como motivo para desejo de voltar não só o sol e a praia como também o carácter alegre e hospitaleiro da sua gente. Na Suíça, no México e em Espanha recebi a mesma resposta à pergunta não isenta de curiosidade:

- O que o faz voltar a Cuba?
- A sua gente, sem dúvida.

A sua gente: ou seja, a sua vida, os seus costumes, a sua cultura.

Os aborígenes foram extintos. Os espanhóis estabeleceram-se no nosso território. Trouxeram os africanos como escravos. Foi assim que a nossa Malinche se tingiu de preto. Do concubinato entre o espanhol e a preta, livre ou escrava, nasceu-nos essa criatura, a melhor invenção galega, segundo os elementos genéticos, conhecida no mundo inteiro como a mulata. E do concubinato da feminina e doce guitarra espanhola com o tosco e viril tambor africano nasceu a nossa música. O som, a rumba, o chachachá, o bolero, o mambo e a salsa têm percorrido o mundo.

Natureza e cultura aliam-se, desde sempre, nas criações artísticas e literárias cubanas. O eminente poeta José María Heredia, no seu Oda al Niágara, clamava pelas palmeiras, entre assombrado e nostálgico: "Mas que procura em ti a minha vista ofegante com inquieto afanar? As palmeiras, ai". Nicolás Guillén, também poeta, captou nos seus poemas o ritmo mestiço das nossas gentes. Lecuona universalizou a música do carnaval cubano, manifestação popular da nossa cultura, ainda vigente. Caturla e Amadeo Roldán vestiram de gala a música de raízes populares. Benny Moré exaltou as belezas naturais de Varadero, Cienfuegos e Manzanillo e deixou-nos bonitas canções de amor. Carlos Puebla passou da "Bodeguita del Medio" para o reconhecimento internacional ao cantar a divina presença do Comandante Che Guevara. Silvio Rodrigues lançou pelo mundo o seu grito de busca do unicórnio azul, símbolo da liberdade perdida ou da mulher apaixonada, consoante a interpretação leitor.

Mas não foi só a música. Carpentier, Lezama Lima, Miguel Barnet, são nomes admirados no mundo da Literatura. Portocarrero, Lam, Flora Fong, Fabelo, Nelson Dominguez, entre outros, enchem de texturas e cores as galerias internacionais. Alicia Alonso criou uma escola Cubana de Ballet que nos prestigia. Gutiérrez Alea ocupa um lugar de destaque na cinematografia internacional. Santiago Alvarez fundou uma escola de documentários cinematográficas, que impulsionou o novo estilo de documentário. E as Escolas de Arte, criadas e mantidas pela Revolução, reafirmam e garantem a continuidade do movimento cultural cubano, dando voz a novos nomes de escritores e artistas que garantirão um futuro brilhante para as artes e a literatura cubanas.

Num intenso e renovado esforço a cultura transforma-se nos bairros mais humildes e nas zonas rurais mais afastadas. Festivais de teatro, de cinema, de ballet, de guitarra, de boleros, entusiasmam especialistas interessados e um público ávido de participar nos eventos. Cuba é uma imensa festa do espírito.

Esta pequena ilha pode mostrar, orgulhosa, centros históricos declarados património da humanidade, concertos, recitais, cursos em universidades e centros docentes, de alta qualificação intelectual, jóias arquitectónicas, bailes folclóricos, pintores primitivos, trovadores e poetas populares e muitos outros atractivos. Pode mostrar, ainda, o calor solidário e generoso de um povo. É difícil visitar Cuba e sair sem um amigo, ou muitos amigos, que deixaram no visitante uma profunda recordação para além das belezas naturais da paisagem.

É a essa paisagem humana, a essa gente, a esse crepitante mundo de criação e sonhos que querem voltar os turistas que tiveram a oportunidade de penetrar nessa palpitante realidade humana.

E é este povo, como os seus aborígenes, com as mãos cheias de poesia e canções, que esperam os que chegam à nossa terra para nos conhecer melhor.

Se alguém se perguntasse que frase escolheria para a promoção da próxima temporada turística no nosso país, não consultaria computadores, nem apelaria a uma realidade virtual. Voltaria ao início e elegeria a frase que aquele primeiro "operador turístico" Cristóvão Colombo, exclamou maravilhado ao avistar as nossas costas. Tendo em conta a pressa com que se vive no mundo actual, sintetizaria as suas palavras numa frase mais breve. Simplesmente escreveria: "A mais formosa".

E estaria a interpretar uma realidade que nos transcende.

Obrigado.

Intervenção de Enrique Nuñez
Vice-Presidente da Unión de Escritores y Artistas de Cuba (UNEAC)


  
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Edição:

N.º 82
Ano 8, Julho 1999

Autoria:

Enrique Nuñez
Vice-Presidente da Unión de Escritores y Artistas de Cuba (UNEAC)
Enrique Nuñez
Vice-Presidente da Unión de Escritores y Artistas de Cuba (UNEAC)

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