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Junho...

Em Junho, neste Junho de 1999, permitam-me evocar uma escola, a Escola do Magistério Primário do Porto, onde há vinte anos terminei o curso de professor do ensino primário. A sua história, como um espaço de formação de professores que viu agonizar a Monarquia, que viveu o fulgor e as contradições da 1ª República e se atolou no pântano salazarista em que o país se tornou, ainda está por fazer; a sua história no pós-25 de Abril de 1974, até ao seu encerramento em 1989, também está por fazer. Espero por isso que um dia alguém se possa interessar por esta escola, podendo revelar-nos a sua relação com o tempo e a História, desvendar os sentidos dos múltiplos projectos de formação que nela foram acontecendo, explicitar alguns dos seus não-ditos mais significativos e, quem sabe, ajudar- nos a compreender melhor, ou de forma diferente, os professores que fomos e somos.
Eu não o farei. Receio que o meu olhar nunca deixe de estar excessivamente comprometido com os afectos e os desafectos, as emoções, as alegrias, as desventuras, os sonhos e os pesadelos que fui construindo em função do tempo que lá vivi entre 1976 e 1979, apesar de reconhecer e saber que não é possível edificar um discurso em História através de narrativas despidas de compromissos. Há, certamente, gente mais habilitada, motivada e capaz de produzir trabalhos significativos e pertinentes sobre a Escola do Magistério Primário do Porto. Candidato-me a leitor empenhado dos textos que alguém escrever, assumindo, então, que esta escola constitui para mim, e apenas, um pretexto para deambular sobre o percurso de um projecto de formação que foi acontecendo num contexto de algum modo inquietante e inquieto que uma geração de jovens se propôs continuar ainda a inquietar.
A Escola do Magistério Primário do Porto, nesse tempo, nunca deixou de ser um espaço educativo prenhe de contradições. Tanto a podemos caracterizar pela incompetência científica e pedagógica de muitos dos seus professores, como a podemos recordar em função da qualidade formativa de alguns projectos que outros docentes foram capazes de gerir e dinamizar. Tanto podemos referir a administração autocrática a que fomos sujeitos, como podemos narrar as múltiplas iniciativas democráticas que fomos desenvolvendo nos espaços de liberdade que soubemos construir. Tanto podemos recordar o sofrimento e todas as tarefas inúteis que vivemos enquanto alunos, como desvendar os momentos de encontro que tivemos o privilégio de viver quando nos incentivaram a ser interlocutores e, deste modo, a descobrirmo-nos como produtores de sentidos, permitindo-nos começar a compreender, no decurso desse processo e na sequência da reflexão que o mesmo nos suscitava, as nossas possibilidades de acção como cidadãos e professores neste país.

Independentemente das vicissitudes do projecto de formação que vivemos foi possível percebermos, quem sabe se pela primeira vez, que a vida numa escola poderia assumir outros sentidos em cuja construção deveríamos participar como actores privilegiados. O reconhecimento deste outro estatuto como alunos permitiu-nos entender, então, e de forma substancial, a necessidade de virmos a assumir um outro papel como docentes. E este, provavelmente, foi o mais importante legado que, como seus alunos, recebemos da Escola do Magistério Primário do Porto (EMPP), o que por sua vez, e apesar de todos os equívocos lacunas e insuficiências do seu projecto, lhe permitiu assumir-se de forma inquestionável como um espaço de formação pessoal e profissional da geração de alunos a que pertenço.
Olhar, hoje, a minha escola do magistério implica, necessariamente, que se deva olhar para um tempo que contribuiu, a seu modo e de forma decisiva, para moldar algumas das condições que ajudam a explicar muito do que aí se passou. Em 1976/77 vivíamos os resquícios do 25 de Novembro, o chamado período de normalização que no Ministério da Educação tinha um rosto, o do ministro Sottomayor Cardia e uma vontade, a de formalizar juridicamente o papel tutelar do Estado no âmbito da gestão do sistema educativo, de forma a neutralizar todas as iniciativas educativas que não se enquadrassem nessa ordem pré-estabelecida que do centro visava impor interpretações universais e inequívocas acerca do desenvolvimento e das necessidades educacionais da sociedade portuguesa (Correia, 1999).

Em 1976/77, chegamos nós, então, a uma escola do magistério primário que vivia uma fase de transição entre uma experiência pedagógica tão ambiciosa quanto efémera e a tentativa de afirmação de um projecto congruente com os propósitos do consulado do ministro Cardia. Tendo vivido, de forma diversa, o período subsequente ao 25 de Abril, pode considerar-se que o grupo de jovens que nessa época entrava para o "Magistério" era, independentemente do seu posicionamento partidário, um grupo que estava longe de se caracterizar pela indiferença face aos acontecimentos políticos e sociais que então iam vivendo. Pelo contrário, havia um número interessante de pessoas que assumia militâncias partidárias activas e vigorosas, do mesmo modo que a maioria dos alunos partilhava um sentido global de participação cívica que a conjuntura política da época também ajudava a explicar. Não seria aliás por acaso que circunscrevendo-se as condições mínimas de acesso ao antigo 5º ano (actual 9º ano), a quase totalidade dos jovens que nesse ano ingressaram na EMPP tivesse completado o curso complementar dos liceus e alguns tivessem mesmo realizado o denominado Serviço Cívico, tendo estes optado por frequentar o curso de professores do ensino primário e não pela entrada em cursos universitários aos quais poderiam, igualmente, habilitar-se. A crença na transformação política, social e cultural do país, o desejo de participar activamente nessa mudança, a valorização da educação escolar como um factor primeiro dessa transformação constituíam, assim, referências primordiais dessa geração de alunos, cuja voz e vontade se iriam fazer sentir ao longo dos três anos em que permanecemos na EMPP.

É este grupo de gente que se começa a debater, desde o primeiro dia, com a contra-reforma do ministro Cardia, a qual afectou de forma decisiva a experiência de formação vivida pelas escolas do magistério no ano lectivo de 1975/76. No caso do Porto, acabou-se, por exemplo, com as actividades de contacto que possibilitaram a muitos jovens conhecer escolas e comunidades neste país que nunca sonharam existir e onde se encontraram com gentes e culturas que, como docentes, teriam de aprender a reconhecer e a valorizar. Afastaram-se professores qualificados, capazes de construir e desenvolver um projecto que possibilitasse a formação de professores do ensino primário interessados e habilitados em contribuir para a transformação tão urgente quanto necessária deste nível de ensino e admitiram-se outros que, na sua maioria, não possuíam as mínimas condições pessoais, científicas e pedagógicas para dinamizarem um tal projecto. A eleição de um novo director constituiu a machadada final na experiência vivida no ano anterior. Ao diálogo, e às aprendizagens que o diálogo suscita, sucedeu-se o autoritarismo, as medidas arbitrárias e a repressão das iniciativas dos estudantes. Instalou-se, assim, um clima de confronto que se foi agravando graças a um estilo de gestão tão autocrático quanto inábil. Entre a nostalgia de um tempo de formação que não vivemos e a desilusão de um presente que não desejávamos, sucederam-se as saudades de um futuro que pensávamos poder construir. Passamos então a resistir e a encontrar nessas actividades de resistência política, cultural e pedagógica um dos esteios do projecto de formação que acabamos por viver, descobrindo assim as possibilidades de gerir os espaços de liberdade que ainda possuíamos. Descobrimos também como alguns professores poderiam ser importantes na vida dos seus alunos.

O Bento foi um desses professores. José Gomes Bento, um homem de convicções inequívocas e de gestos claros. Era, igualmente, um interlocutor exigente, mas suficientemente disponível para dialogar e discutir de forma aberta e sem preconceitos, interrogando-se e interrogando-nos, numa procura inquieta e reflectida acerca do sentido e do significado dos acontecimentos e das coisas. O Manuel Matos, há dias, recordava-o como alguém capaz de assumir uma atitude de tolerância quase suicida face aos outros, o que, no seu caso, deveria ser entendido como um factor potenciador da sua intervenção política, sindical e pedagógica, conferindo-lhe uma consistência ética e uma congruência, só explicável à luz do conjunto de valores que nortearam as opções que foi realizando ao longo da sua vida. Quando o conheci na EMPP como meu professor de Pedagogia, ainda não sabia que, por ter estado preso durante onze meses, devido à sua militância no PCP, tinha sido impedido de leccionar durante o mandato político de Oliveira Salazar. Ainda não sabia que tinha participado activamente nos Grupos de Estudo do Pessoal Docente do Ensino Secundário e que, também por isso, estivera relacionado com o aparecimento da revista "O professor", tendo publicado, ainda em 1972, uma das obras de referência da História do movimento sindical dos professores portugueses: "O movimento sindical dos professores - finais da Monarquia e I República". Desconhecia igualmente que estivera relacionado com a fundação do MES (Movimento da Esquerda Socialista) e do Sindicato de Professores da Zona Norte, em Abril de 1974, antes de ter participado, em 1982, na criação do Sindicato dos Professores do Norte. Terei de reconhecer, contudo, que não precisava deste conjunto de informações para descobrir, através dele, as implicações políticas, pessoais e profissionais de uma genuína opção pela esquerda. A importância que o diálogo, a reflexão, a pesquisa e a colaboração assumiam como elementos de mediação incontornáveis na relação quotidiana que ia estabelecendo connosco permitiu-me compreender, pela primeira vez, as exigências e as possibilidade pedagógicas dessa opção. Não posso, por isso, deixar de associar o Bento a uma escola que, apesar dos dias cinzentos que por lá vivemos, constituiu, a seu modo, um espaço de formação pessoal, social e profissional, para o qual ele contribuiu com a sua coerência, com o seu saber, com o seu empenho e militância em prol de uma sociedade e de uma escola democráticas.

Rui Trindade
Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação/Universidade do Porto


  
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Edição:

N.º 81
Ano 8, Junho 1999

Autoria:

Rui Trindade
Faculde de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade do Porto
Rui Trindade
Faculde de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade do Porto

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