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A Sociedade do Espectáculo e o Negócio da Violência

Na sociedade do espectáculo em que vivemos já não existe "indústria de guerra". Os países ricos, mesmo os remediados e até os pobres têm a sua "indústria de defesa". Agora ninguém faz guerras. Todos exercem o direito à defesa. Assumir que se faz a guerra é assumir a barbárie. Destruir e matar são actos humanitários. E contribuem para enriquecer a sociedade do espectáculo em que vivemos.

O nosso século foi bom para a "indústria da defesa". Foi particularmente florescente depois da II Guerra Mundial e da divisão do mundo nos dois grandes blocos: o do Capitalismo Privado (liderado pelos EUA) e o do Capitalismo de Estado (liderado pela URSS). A corrida aos armamentos, a competição armamentista, a espionagem militar, científica e tecnológica, foram tempos de que certamente muitos dos protagonistas destes feitos têm saudade.

Com a falência do Capitalismo de Estado nos países do Pacto de Varsóvia e a sua gradual transformação na China e nos países da sua área de influência, o mundo perdeu graça e razão de ser para muitos políticos, espiões e militares e preocupou seriamente os "industriais da defesa". Mas enquanto alguns filosofavam sobre o fim da história e sobre outras bizarrias, os industriais, com o sentido prático que se lhe reconhece, trataram de relançar o negócio.

Desde a II Guerra Mundial a justificação para a guerra parecia ser, inevitavelmente, de natureza ideológica. Retoricamente cada lado deu a si e ao outro rótulos: democratas e anti-democratas, comunistas e anti-comunistas. A meu ver, pura retórica de um lado e do outro, pois não se tratava senão de duas variantes dum mesmo sistema, o capitalista. Mas com diferenças e discursos suficientes para alimentar emoções, ódios e paixões de grandes massas da população, o quanto baste para justificar a indústria armamentista.

Nos finais dos anos oitenta, foi necessário criar novas ameaças, novos inimigos, novos focos de conflito, novas formas de justificar o negócio da guerra. É que este, a par do narcotráfico e da ajuda humanitária são três dos principais pilares que sustentam, desde há muito, o crescimento e desenvolvimento sustentado do Capitalismo Privado. Acabe-se com estas fontes de acumulação/concentração/aplicação de capital e teremos de facto não o fim da História, mas o princípio de uma outra história, a que está para lá do capitalismo. O mundo ocidental fez a revolução industrial e enriqueceu através da exploração dos espaços e dos povos coloniais. Hoje, é à "industria de defesa", ao tráfico de droga e à ajuda humanitária que o capitalismo recorre para as injecções de capital necessárias ao seu reequilibrio e sobrevivência.

A curto e médio prazo, não se esperavam conflitos graves por razões de natureza ideológica. Perigo, e perigo sério, parece vir de conflitos entre civilizações. Um perigo que alguns procuram diminuir pela intensificação do uso dos espaços (políticos, científicos e outros) de debate internacional visando fortalecer as trocas e aumentar a capacidade de aprender com os outros e sobretudo de ter o trabalho de aprender a respeitar, e a incorporar, outros valores, outras culturas.

Uma das principais dificuldades que se colocam aos educadores e professores (nos vários espaços civilizacionais), não é apenas entenderem, é incorporarem nas suas convicções mais profundas que o povo, o grupo social, a cultura a que pertencem, com as suas crenças, tradições e valores não podem ser o modelo a que todos os outros se devem referir. No nosso caso aceitemos que o mundo ocidental não é o modelo exclusivo da humanidade. A democracia "ocidental" não é modelo exclusivo de organização política de todos os povos. A economia capitalista não é o modelo exclusivo e derradeiro da organização da produção de bens materiais. A medicina, a educação, a concepção de justiça, de família, a arte, a ciência (...) ocidentais não são modelo exclusivo que pode levar a uma melhor saúde da humanidade e do planeta em que vivemos. São contributos, são o nosso contributo, são o que temos e historicamente fomos capazes de desenvolver para dar em troca. Uma atitude baseada na convicção de que o povo a que se pertence, com as suas crenças e valores é o modelo a que as outras devem submeter-se, é um dos principais problemas que impedem a compreensão e o espírito de tolerância entre as comunidades de uma região.

Na última década assistimos a um incremento de conflitos e de guerras, em todos os continentes, motivadas por esta atitude etnocentrica. Os senhores da "indústria de defesa" continuam a criar e a alimentar os "senhores da guerra", incitando ódios étnicos, apoiando extremismos, (...) assim reactivando e desenvolvendo o mercado de armamento. Para continuar a produzir armas cada vez mais sofisticadas é preciso experimentá-las (se possível em situação real) e é preciso vender as que vão ficando obsoletas. A "industria de defesa", alimenta-se das guerras tradicionais - as feitas pelos pobres com armas de pobres - mas necessita cada vez mais de guerras mais sofisticadas, capazes de utilizar armamento da gama mais alta. É a política do pronto a vestir e do fato por medida. Cada coisa tem o seu preço, o seu lugar, a sua clientela.

Os últimos acontecimentos guerreiros na Europa (e não só) resultam -a par de outros factores - das necessidades deste negócio. Para além da barbárie que atinge directamente todas as populações do território afectado (sejam quais forem as suas crenças, tradições e valores) vários outros problemas começam a ser visíveis. Destes, talvez as manifestações de violência extrema nalgumas escolas sejam as mais visíveis. A intolerância cultural que o discurso arrogante dos políticos "ocidentais" revela, a forma como este discurso está a ser "vendido" em todo o mundo, pelos meios de comunicação social, não pode deixar de provocar (como, apesar das restrições na informação já se vê nalguns países) o aumento da intolerância e os sentimentos de hostilidade entre povos e culturas.

Nos últimos dez anos vários governos precipitaram-se na destruição da ex-Jugoslávia. O etnocentrismo foi tomado como modo de resolução de problemas. Tomou-se partido e apoiaram-se todos os extremismos. A violência cega de uns foi aplaudida como acto heróico, a de outros como acto diabólico (...).
A incapacidade para compreender sistemas complexos leva a utilizar receitas simplistas para resolver problemas complexos. Quando a esta incapacidade se junta a arrogância que escorre do poder e a convicção de que nós somos a medida do mundo a que todos se têm de adaptar, tudo se torna mais grave.

No trabalho docente, as estratégias e métodos, usados para desenvolver a capacidade dos alunos na compreensão e resolução de sistemas e problemas complexos tornam-se inúteis quando os docentes não possuem eles próprios essa capacidade de compreensão. Daí a importância da seriedade da formação inicial e continuada dos professores e o estabelecimento de regras sólidas no ingresso da profissão.

Também na sociedade ocidental, o facto de sermos capazes de produzir "armas inteligentes" não dispensa, antes exige, sermos governados por políticos pelo menos medianamente inteligentes. Daí a importância de não deixarmos transformar os actos eleitorais em passagens de modelos ou concursos "pimba" de televisão. O que continua a contar na vida dos povos é ainda a realidade e não a aparência das coisas.
O sofrimento na Europa, na África, na Índia, no Paquistão, em Timor, na Jugoslávia, (...) estão aí. Não desaparecem com o sorriso estudado com que nos telejornais se anuncia a barbárie.

José Paulo Serralheiro


  
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Edição:

N.º 81
Ano 8, Junho 1999

Autoria:

José Paulo Serralheiro
Professor e Jornalista. Director do Jornal a Página da Educação.
José Paulo Serralheiro
Professor e Jornalista. Director do Jornal a Página da Educação.

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